Por: Domingos Bueno
“..a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; (...) E disse Deus: Haja luz; e houve luz.”. Gênesis 1:2,3
Dizer significa
expressar-se através de palavras: soar... e por
vezes ressoar. Por que o comando divino do Genesis não foi simplesmente
um pensamento, ou antes, um desejo? Tipo: - e Deus pensou/desejou: Haja luz... Por
que a divindade criadora do universo precisaria usar de palavras antes delas
existirem? Alguns teólogos dizem que Ele não disse propriamente, pois a palavra
divina difere da humana (embora exista aquela outra afirmação da imagem e
semelhança...), enfim...
Na cosmologia hindu,
a criação do universo acontece quando Brahma expira, expandindo a criação,
sendo a palavra/mantra OM o próprio corpo sonoro do Absoluto.
De novo: a
expiração se refere ao ar? (dos pulmões?) Bem, ai existe uma questão de ordem
física, pois até onde se conhece do universo, apenas o planeta terra possui
atmosfera adequada a vida tal qual a conhecemos. Também não existe ar no
espaço/vácuo, o que nos levaria à necessidade de explicitação de ideias e
conceitos, que apenas recentemente (no tempo expandido) foram descobertas e
admitidas, por populações majoritariamente ágrafas e desprovidas dos rudimentos
da biologia humana ou da física na chamada ciência ocidental.
Argumenta-se
que tais narrativas seriam tentativas de dar sentido ao cosmo e a vida
utilizando os recursos cognitivos disponíveis no(s) momento(s) em que foram
compostas, anunciadas ou/e recompostas. Será?
A
interdependência entre pensamento e fala que já foi objeto de muitas
elaborações parece ser, antes uma relação de precedência, o resultado do
desenvolvimento da própria consciência humana. Embora anterioridade e
interdependência possam apenas ser supostas, se reconhece a necessidade dos
seres humanos e não humanos de comunicar-se, o que ocorre através de suas
interfaces (antes de existirem os ciborgues: nós), das quais a fala foi, ao
menos até o surgimento da escrita, soberana.
Palavras
faladas são sons e sons operam no mundo sensível comunicando, ensinando,
ordenando e, por que não, criando. Uma palavra sem significado é apenas um som,
enquanto que o significado é o critério da palavra, quando desloca um fenômeno
físico e sensorial para um ambiente cognitivo, uma interface entre língua e
pensamento.
Diferentemente
das grandes listagens binárias de computação, por exemplo, que operam por comparação
e recorrência para produzir algoritmos, o pensamento não se organiza
necessariamente de maneira linear e não parece operacional que alguém possa
pensar, exclusivamente, a partir de variáveis ou declarações gramaticais,
sujeitos verbos e predicados. Jack Goody, discutindo com Levi Strauss, pondera
que as interfaces de comunicação de uma determinada sociedade são determinantes
dos estilos cognitivos e das modalidades de pensar. Esse é um assunto que
neurolinguístas e filósofos dedicam-se em profundidade, e entre esses últimos
podemos nos lembrar de Deleuse em Diferença e Repetição, mas não é minha
intenção aprofundar aqui esse assunto. O que me chama atenção é fato das
conexões e associações acontecerem de formas tão surpreendentes, produzindo
reflexões metafísicas geniais, por exemplo, durante o descascar de batatas ou
escovando os dentes.
Mas o que é o
som? E o que seria a música? O som ouvido é diferente do som pensado?
Fisicamente falando sim, mas um poderia existir sem o outro? Em qual ordem de importância
um sobrepõe-se ao outro?
Sons são ondas
que se propagam de forma circuncêntrica e podem ser percebidos por seres
humanos e não humanos de forma estereofônica em determinadas faixas de
frequência, que permitem conhecer a distância e a localização de fontes sonoras
ocultas, como animais na floresta, proximidade de automóveis, campainhas ou
qualquer fonte dotada de potência no range de frequências audíveis. Sons abaixo
de 20Hz são infrassônicos e só podem ser percebidos por certos mamíferos, como
elefantes, que os utilizam como sistema de comunicação, enquanto sons
ultrassônicos são utilizados como ecolocalização por morcegos, baleias e
golfinhos. O som se propaga apenas em meios materiais líquidos, sólidos e
gasosos. Para o meio humano podemos pensar que os sons se propagam e podemos
percebê-los através da água, do ar e de sólidos dotados de elasticidade, como a
madeira.
E nesse ponto
voltamos a questão anteriormente levantada: de que forma essa sonoridade
sensorial percebida como palavra ou música guarda semelhança com sua evocação
mental? Enquanto um fenômeno que acontece no tempo relacional estabelecido
entre as diferentes frequências (as notas), seria possível relembrar uma
melodia instrumental -como um quarteto de cordas-, sem reproduzi-la mentalmente
nota após nota? Ou pensar, em termos estruturalistas, na descontinuidade de um
evento que torna-se contínuo apenas depois de unificado num significante, de
forma aparentemente diversa de uma memória visual?
Músicos
experientes podem reproduzir mentalmente sons e harmonias a partir da
decodificação de um código visual chamado partitura. Essa habilidade de
reproduzir informações musicais complexas mentalmente foi chamada de
"audiação" por Edwin Gordon. Os parâmetros de duração, frequência e
intensidade sonora, junto com a letra permitem conhecer, através do ouvido
interno, um fenômeno físico antes que aconteça. Compositores e arranjadores
criam mentalmente melodias e arranjos através dessa interface antes mesmo que
tenham existência sonora sensível. Dessa forma é possível criar eventos
musicais e compartilhá-los com outros sem a sua manifestação, de forma
semelhante ao que se faz com textos (embora esses sejam quase sempre escritos
para serem lidos e não falados).
Mas seria essa
música pensada semelhante àquela música vivenciada? Ou ao contrário, como se
distinguem? Trata-se de um fenômeno
físico percebido a partir de ressonâncias (o circulo das quintas) que,
organizadas em planos hierárquicos, deram origem ao sistema tonal? Ou uma
escola de pensamento que subverte a relação das relações criando outros
sistemas organizativos e classificatórios musicais (dodecafonismo, atonalismo e
outros ismos), tendo como premissa a negação uns dos outros? A música
significaria por si só enquanto discurso, independentemente da interlocução? É
um sistema comunicação, ou um sistema de pensamento? Talvez não existam
respostas, ou talvez as perguntas sejam mal formuladas.
A observação de
como sociedades diferentes pensam as manifestações sonoras nos dá algumas
pistas para, se não compreender, ao menos aceitar a diversidade de usos,
práticas e concepções e relativizar nossa tendência a reificação do que seja
bom, estético, criativo, complexo ou simples.
Um exemplo
interessante disso é uma prática musical dos índios Kulina (Madija) do Rio Alto
Purús, que utilizam o jijiti, the musical bow, que é um arco musical (imagine
um pequeno arco de flecha), de uma corda, que é colocado entre os dentes num
dos cantos da boca, e acionado por fricção como um violino por uma vara de
bambu ou flecha. Tem uma diferença em relação ao som dos instrumentos de corda
friccionadas, porque a haste (o arco sem crina) toca simultaneamente na corda e
no arco, produzindo uma sonoridade característica, alterando as notas com a
outra mão oposta a do arco.
Esse
interessante instrumento ameríndio produz um tipo de música que frequentemente
reproduz cantos cotidianos ou rituais, mas com uma característica a meu ver
única: o som resultante é extremamente baixo, praticamente inaudível.
Quem já
experimentou morder a área das tarrachas de um violão, ou o tampo de um piano
quando está sendo tocado (eu já fiz isso), sabe o tipo de experiência sensorial
única que se consegue, como se o som estivesse acontecendo “dentro de sua cabeça”.
Na época em de
minha pesquisa junto a este povo, o jijiti era apenas executado por xamãs ou
aprendizes, talvez por conta de sua baixa sonoridade que não permite
socialização sonora eficiente, o que lhe confere um caráter singular e
introspectivo. Manifestações musicais são sempre pensadas em termos relacionais
ou funcionais, enquanto um sistema de comunicação com funções estéticas,
religiosas ou intelectuais bem definido. Qual o sentido (nos dois sentidos) de
um som que apenas é ouvido pelo seu executante? Estou fazendo uma separação
aqui entre aquela música pensada, relembrada ou imaginada e outra ouvida
exclusivamente pelo executante, no caso um xamã: na primeira a sonoridade não
se expressa fisicamente (pensamentos são manifestações físicas?), enquanto que
na segunda o volume é tão reduzido que apenas o xamã o ouve. Será?
Berndt Brabec,
em seu trabalho sobre Shipibo do Perú traça um paralelo entre aquelas práticas
de cura xamânicas e as praticas terapêuticas musicais ocidentais. Essas últimas
são conduzidas por terapeutas músicos que tocam vários sons, sequências e
timbres e pedem para que o paciente escolha aqueles que lhes parece mais
agressivos, deprimentes e causadores de dor. Em seguida repetem o
procedimento pedindo que o paciente
descreva, de modo inverso, o(s) tipo(s) de som que mais lhe agrada, acalma e
promove seu bem estar. Após conhecer as sensações do paciente, o
musicoterapeuta, em tempo real, cria uma composição musical com os elementos
escolhidos pelo paciente, iniciando com a abordagem do incomodo, dor e
desconforto, para aos poucos ir introduzindo elementos de bem estar e conforto
na composição, até que ela se torne totalmente confortável e curativa para o
paciente. Esses experimentos demonstraram aumento significativo na melhora dos
pacientes em relação aos placebos ou musica aleatória.
Isso é muito
similar ao que os xamãs fazem, ao conduzir musicalmente o paciente através do
reconhecimento das causas de sua doença – normalmente inveja, espíritos de fora
de seu círculo, quebra de regras de alimentação e conduta - propondo sua cura
através de palavras cantadas, normalmente pensadas enquanto expulsão do mal ou
sua transformação em saúde através de um processo de transformação e não da
destruição do mal, como no caso do dori (feitiço) Kulina.
Enquanto
permanece subjacente a argumentação da semanticidade musical, vários autores
tem procurado estabelecer relações e complementaridades entre as diferentes
esferas do social e a música. Jean Michel Beaudet analisando os estilos
musicais dos Wayãpi, além de sugerir uma simetria entre o que ele chama de
configurações musicas e diversos planos concêntricos de socialidade (a família,
a aldeia, os espíritos), faz também uma importante distinção entre os sons
invisíveis audíveis, cantados ou instrumentais, e os sons audíveis visíveis,
produzidos com o auxilio da fumaça do tabaco.
Essas músicas
de jijiti se enquadram então numa outra categoria de configuração musical, de
sons invisíveis e inaudíveis, ressoando exclusivamente na caixa craniana do executante,
sendo percebidas pelo xamã através da junção das vibrações táteis e auditivas,
que ganham significado no mesmo local onde significam as palavras: a cabeça.
A maior parte
das pessoas não pode ouvir os sons dos espíritos, senão através da boca dos
xamãs. É através deles que os invisíveis e inaudíveis ganham visibilidade e
audibilidade, podendo habitar e interagir entre os visíveis. É o papel do xamã
funcionar como uma interface cosmológica materializando sonoramente os sons dos
inaudíveis através de cantos e palavras. Essa interface, acredito, encontra-se
numa posição intermediaria e liminar, nem cá nem lá, numa zona de significantes
compartilhados que permitem essa transdução simultânea de significados e
conteúdos.
Em
contrapartida ao fato do xamã ouvir sons inaudíveis (ou dos inaudíveis) ele
também cria sons inaudíveis, seja através do pensamento ou desse tipo
particular de instrumento, o arco musical, que nos remete a uma concreta
afirmação da semanticidade musical silenciosa através da qual é possível uma
comunicação profunda, pessoal e individual entre visíveis e invisíveis.
Criança Madija, aldeia Cacau - Foto: Domingos Bueno* |
Parte das
dificuldades de um modelo analítico para a semanticidade musical advém de que
significados e significantes são compreendidos apenas por aqueles que conhecem
e reconhecem esses códigos. Os temas de arco musical nos oferecem um exemplo de
pratica musical valiosa, pois tem destinação, intercolução e direcionalidade,
independentemente de apreciações coletivas, um dos grandes desafios na
semântica dos sons.
Domingos Bueno é Etnomusicólogo,
professor da Universidade Federal do Acre e Doutorando pela Universidade
Federal do Paraná.
* O Prof Domingos, autor desta imagem, por grande apreço que te pela mesma solicitou sua inclusão no texto.
Todas as demais imagens foram retiradas do site do Instituto Socioambiental – ISA. O povo
Kulina (Madija) não possui muitos registros fotográficos disponíveis. Vale
citar que um registro mais completo sobre este povo estará sendo realizado pela
FUNAI no ano de 2017, na região do rio Envira – Feijó.
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