Por: Jairo Lima
“Teve um tempo em que o índio para ser um cidadão
brasileiro tinha que usar roupas, ser batizado, parar de falar a língua
indígena, falar a língua do branco. Tudo isso para ser considerado gente.
Será que não estamos violando os direitos sob a
justificativa de estarmos protegendo algo? Afinal, pode ser que reconhecer a ayahuasca
contradiga a essência da coisa”.
Este é um excerto dos registros da fala de Francisco
Piyanko Ashaninka, durante uma reunião em que estávamos discutindo, juntamente
com o IPHAN e a presidência da Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá
(OPIRJ), as bases para a realização, em 2017, de uma série de encontros
regionais e, ao final de uma grande conferência estadual para discutir um
assunto que vem gerando diferentes posições e pequenos conflitos: a
patrimonialização da ayahuasca.
Como!?
Pois é, o assunto não morreu como eu já havia alertado em
textos anteriores, para desalento de um querido amigo que, em nossos encontros
pós-conferência, insiste em demover-me de uma visão e posicionamento que, segundo
ele, é equivocada. Esforço louvável, mas inútil ante a convicção que me move e
que ficou clara nas falas proferidas pelas lideranças durante as assembleias
regionais que vem ocorrendo.
Assim, embalado pelas manifestações das lideranças e
também pelo excelente texto do Iberê Guarani (clique aqui), bato na tecla do
principal erro da “conferência de coisa nenhuma”: juntar farinhas diferentes no
mesmo saco. Ou seja, querer transformar um evento de cunho científico (e sem
“espírito”) em um encontro de linhas, doutrinas, interesses e visões sobre um
assunto que é profundo, complexo e etéreo, e, por isso mesmo, inalcançável para
a compreensão de boa parte dos doutores e “mestres” presentes.
Está claro que cada nicho (igrejas, estudiosos, indígenas
que viajam, etc) tem um interesse nesse movimento de “patrimonialização” ou
“reconhecimento” do seu uso. Muitos destes interesses são de cunho pessoal,
seja por status, seja para legitimação ante a sociedade e os órgãos de controle,
assim como também sua legitimação junto ao meio científico/acadêmico. Não entrarei
no mérito e nos interesses que movem tal reconhecimento. Mas é um assunto que
ainda trataremos.
O tema vem sendo discutido nas assembleias das
organizações regionais do Juruá (OPIRJ, OPIRE e OPITAR*), em parte pela má
impressão que ficou da “conferência de coisa nenhuma”, em parte devido à
retomada do processo de patrimonialização através do IPHAN.
O indicativo que vem saindo destes encontros é a
confirmação da dissonância observada na conferência, entre indígenas e os
demais presentes. Dissonância esta que foi muito além da carta de manifestação
dos indígenas - e toda a bizarra situação que a envolveu, que fez com que a
mesma tivesse duas versões, atendendo a interesses nitidamente diferentes:
indígenas e organização do evento.
É interessante observar as manifestações a respeito do
assunto deste reconhecimento. Venho observando, em diferentes situações, que em
geral os indígenas não veem com bons olhos este processo, principalmente quando
são informados sobre o procedimento de estudo necessário. Pude ouvir um pouco sobre
isso na assembleia da OPIRJ, realizada na TI Puyanawa recentemente, e também em
conversas com diferentes lideranças e algumas comunidades.
Claro que este reconhecimento, em certo grau, atende aos
desejos de um grupo de indígenas que viajam propagando a cultura de seu povo,
seja no território nacional, seja em terras distantes como a do Velho Mundo.
Mas será mesmo necessário isso para que estes propagadores da cultura tenham
legitimidade? Até onde este interesse é pessoal? Isso faz sentido para a
comunidade e os verdadeiros detentores do conhecimento originário sobre a
ayahuasca? São questões complexas que necessitam serem debatidas em espaços
próprios, específicos para um bom “papo de índio”.
E é essa necessidade que motivou a construção de um
projeto interinstitucional que promova conversas regionais e a realização de
uma grande conferência onde todas as terras indígenas do Acre, e parceiros
afins, possam discutir o assunto e decidir se querem ou não fazer parte deste
movimento de patrimonialização que vem sendo discutido e que estará em processo
num horizonte não tão distante, processo este encabeçado pelas igrejas que
utilizam o sagrado chá.
- E
esse papo de ayahuasca como patrimônio da humanidade? –
Pois é, papo doido esse e ininteligível para muitos, principalmente para as
comunidades indígenas. E a justificativa de que seu consumo, de certa maneira,
já se espalhou pelo mundo, nada mais justo legitimá-la e, assim, retirar da
marginalidade tanto os núcleos religiosos quanto os terapeutas holísticos que a
utilizam em suas práticas. Vale lembrar que recentemente tivemos a situação de
um terapeuta brasileiro que foi preso na Rússia por portar e utilizar a
ayahuasca no solo moscovita.
É importante citar que países como o Peru e a Bolivia já
possuem estes processos de salvaguarda dos conhecimentos tradicionais dos povos
originários quanto suas práticas espirituais e de sua medicina. No entanto, a
realidade das comunidades indígenas acreanas são bastante singulares em relação
ao tema.
Não querer fazer parte desta patrimonialização é um
direito das comunidades indígenas e, a meu ver, até certo ponto, é um gesto de
resistência ante à broca insensível do desejo de posse, que move essa nossa
sociedade ocidental que, desde suas raízes fundadoras, apega-se à pratica de
tomar para si tudo o que lhe é de desejo, nada está seguro ante esta
voracidade. Acho isso interessante: o desejo de reconhecer algo, de ser dono de
algo que o legitime diante do outro. A busca pela legitimação e status, mesmo
que procure trazer para o âmbito da sociedade material algo que, a priori “não
é deste mundo”.
Manter o “véu de mistério” talvez seja uma das
estratégias de proteção deste conhecimento tradicional dos povos indígenas.
Cerrar as portas do sagrado, impedido que este conhecimento seja mapeado, dissecado
e publicado como princípio para sua proteção parece ser algo desproporcional
quanto aos benefícios que hão de vir para as comunidades e os detentores
originários destas práticas. Afinal, como encalacrar em uma caixinha de
conhecimentos algo que é tão amplo, diverso e profundo como a ciência
espiritual do Huni, do Kamarãpy, do Uni**?
Analisando friamente o outro lado da “cortina”, vê-se
que, de certo modo, o universo a ser mapeado da cultura dita ayahuasqueira
promovida pelas igrejas é um campo limitado a conhecimentos históricos e
fundantes de certa maneira já conhecidos, ou que possuem suas bases assentadas
em preceitos sincréticos mais ou menos definidos. Também para os doutores
bioquímicos, antropólogos e cientistas acadêmicos, esta linha de estudo
“ayahuasca” não é de todo um universo infinito. No entanto, no mundo indígena,
a coisa não é tão simples e o horizonte não é tão visível assim.
Há de se entender o que realmente seria esta salvaguarda
patrimonial, bem como os diferentes interesses, benefícios ou malefícios que
esta possa representar, na atual conjuntura mundial de uso do chá ou de seus
princípios ativos. Onde as comunidades se enquadram nisso? – É uma questão a
ser refletida e respondida.
Para isso, logo após a malfadada festa (por vezes
mambembe) protagonizada pelos doutores de Ibiza e seus satélites, veio tomando
corpo o movimento de reunir as comunidades para tratarem deste assunto. E um
primeiro passo vem sendo dado com a inserção do tema nas reuniões das
organizações regionais indígenas do Juruá. É um papo que tem que ser feito com
calma, no “tempo indígena”, respeitando as dinâmicas de discussão e tomadas de
decisão.
As comunidades indígenas vêm a cada dia discutindo e
tomando decisões quanto ao controle e proteção de seus conhecimentos. Algumas
delas, inclusive, vêm manifestando por escrito à FUNAI, o seu desejo de não
aceitar a entrada de pesquisadores que tenham como objetivo, o estudo de sua
cosmologia e suas práticas ritualísticas.
- “Eu entendo que
vocês tem dificuldade de compreender isso, mas nós índios temos clareza que
isso vai impactar a longo prazo os índios, pois terão que se enquadrar para ter
este conhecimento reconhecido, igual a ter que mudar seu jeito de ser para ser
considerado gente” – Reflexão interessante feita pelo Francisco Piyanko
enquanto analisávamos as diferentes posturas das comunidades em relação a este
assunto, durante a assembleia da OPIRJ.
Aprendi que a cultura indígena tem como preceito não
deixar assuntos pendentes, e todo esse movimento que se apresenta para o ano de
2017 é justamente acabar com esta pendencia.
Se os doutores de Ibiza e seus satélites não entenderam o
recado que foi dado, ou se preferiram acolher a versão mais aprazível da
manifestação dos representantes indígenas, ou ainda, que desqualificaram as
posições destes representantes citando-os como jovens ou desconhecedores da
verdadeira tradição, agora será o momento em que realmente teremos um espaço
verdadeiramente legitimado e totalmente aberto para o diálogo sobre o tema. Um
espaço gratuito de participação, aberto a todos onde o direito de fala e de
contradição é assegurado e onde tomar-se-á a decisão sobre o interesse dos
povos indígenas acreanos em fazer parte ou não deste processo de patrimonialização.
Um espaço onde os “doutores e mestres” não precisam de
diplomas. Um espaço onde a arrogância acadêmica de alguns não intimida as
posições e falas dos participantes. Um espaço onde, acima de tudo, o que vale é
a participação de todos, é ouvir cada um dos presentes tendo como objetivo
simplesmente o bem comum e o direito de não ser ensacado no mesmo saco de
farinha puba dos que se refestelaram em sua arrogância colonialista.
Certo Raial Orotu? O que você me diz sobre isso? Conta
pra nós como foi esta assembleia na terra dos Puyanawa!
Boa semana a tod@s!
* OPIRE (Organização dos Povos Indígenas do Rio Envira);
OPITAR (Organização dos Povos Indígenas do Rio Tarauacá) e; OPIRJ (Organização
dos Povos Indígenas do Rio Juruá).
** Cada povo indígena possui uma designação par a
ayahuasca.
Todas as imagens utilizadas neste texto são de autoria do artista plástico acreano Tiago Tosh
Bom dia! Muito bom todo esse posicionamento e esclarecimento. Lendo aqui sinto sinceridade, responsabilidade e respeito.
ResponderExcluir- “Eu entendo que vocês tem dificuldade de compreender isso, mas nós índios temos clareza que isso vai impactar a longo prazo os índios, pois terão que se enquadrar para ter este conhecimento reconhecido, igual a ter que mudar seu jeito de ser para ser considerado gente” – Reflexão interessante feita pelo Francisco Piyanko
parabéns pela abordagem tão honesta sobre questão tão delicada. Me interessa muito esse diálogo.
ResponderExcluirEstamos a disposição para o diálogo, caso queira entrar em contato.
ResponderExcluirFlor - é uma felicidade par mim saber que pessoas como você leem este blog
ResponderExcluir