Acredito
que a melhor forma de começar este texto, é contando da onde veio a demanda por
ele. Pois bem, alguns meses atrás, eu conversava com o Jairo, e em dado momento
da conversa, ele me perguntou mais sobre meu povo. Dentre as perguntas feitas,
ele quis saber em que pé estaria a nossa luta pela terra. Acontece que, como eu
expliquei para ele, a luta do meu povo por uma terra passa por um nada pequeno
detalhe: nós ainda estamos lutando para provar que existimos.
Eu
pertenço ao Povo Puri, também denominado Telikong, ou Paqui. Uma busca que
qualquer curioso faça no google pode informar que este povo pertence ao tronco
linguístico macro-jê, e suas terras originárias estavam espalhadas por uma
região que hoje corresponde a parte dos estados de Minas Gerais, Rio de
Janeiro, Espírito Santo e São Paulo, na região do rio Parnaíba e Serra da
Mantiqueira. Os textos - sempre escritos no passado - também informam aos
leitores que os Puri possuíam uma divisão em "pelo menos três subgrupos:
Sabonan, Uambori e Xamixuna". E que "No séc. XVIII, antes de serem
vendidos como escravos, foram estimados em mais de 5.000 índios. No séc. XIX,
foram aldeados em São Fidelis e na Missão de São João de Queluz, registrando-se
655 índios Puri em Resende, em 1841. Em 1885, Ehrenreich localiza remanescentes
Puri no baixo Paraíba" (Freire e Malheiros, 2010).
Creio que não seja difícil para os mais afiados em história compreenderem que esta localização geográfica, por óbvio, situa as terras Puri justamente no caminho por onde passaram as hordas de assassinos e ladrões sanguinários que os livros de história chamam de Bandeirantes e 'pioneiros desbravadores do interior'. E é assim que, as mesmas páginas, escritas no passado, também informam que por volta do século XIX, os Puri foram "dizimados ou miscigenados com colonizadores luso-brasileiros", e esse seria mais ou menos o fim da história. Em outras palavras, de acordo com as informações históricas, os Puri, assim como diversos outros povos originários das terras que foram transformadas na República Federativa do Brasil foram declarados extintos há mais de um século.
Oh,
sim, é claro, é importante citar que existe uma alternativa ao genocídio neste
caso. Há uma escolha à lá Bela Gil: "você
pode substituir genocídio por etnocídio!". Enquanto que genocídio quer
dizer o extermínio físico de um povo, o etnocídio é a "subordinação mental
de um grupo expropriado de suas condições econômicas de sobrevivência, que nega
aos indígenas o direito à terra que já ocupavam e seus recursos naturais, o
direito ao uso de sua própria língua e educação e o direito de fazer sua
história coletiva com autodeterminação” (BAEZ, 2010, p. 133). Assim, pode ser
que tenha sobrado algum Puri vivo no mundo, mas ele teria se dissolvido em face
da miscigenação com os colonizadores luso-brasileiros. Trocando em miúdos, o
texto histórico quer dizer que os Puri se acabaram, ou mortos, ou misturados.
Tudo se passa como se os Puri fossem um exemplo de sucesso da empreitada
'civilizatória' intentada contra os povos originários, para quem não foi dito
"Brasil, ame-o ou deixe-o", mas "Brasil, morra ou
desapareça".
Quadro de José Maria de Medeiros |
A
verdade é que os Puri jamais deixaram de existir. O que houve, neste caso, foi
um apagamento com objetivos muito claros. Como é sabido, a prática dos
Aldeamentos e Reduções, das quais os Puri e diversos outros povos no Brasil
foram alvo, tinham por função reduzir a mobilidade dos indígenas, a fim de
favorecer a usurpação de seus territórios, para assim facilitar o avanço em
direção aos sertões. E é importante destacar que, neste caso, está-se falando
de um quinhão particular de terras muito cobiçado, devido as riquezas contidas
em seu subsolo. É assim que os Puri que não foram mortos vão sendo pouco a
pouco empurrados e encurralados, e daí tem-se origem os Aldeamentos de São Luis
Beltrão e a Freguesia de Campo Alegre, região essa, por sua vez, algo de vários
peticionamentos à Coroa para concessão de Sesmarias, sob a alegação de
tratarem-se de 'terras devolutas'. Em verdade, nada de novo sob o sol tropical
de quem convive há 516 anos com a mesma lógica do raion, que, quando olha para
as terras indígenas nunca enxerga gente, mas apenas os lucros que poderá obter
mediante a sua exploração.
Com
o que então, de uma forma ou de outra, procurou-se uma maneira de varrer os
Puri do mapa, e assim, tivessem sido todos mortos ou miscigenados, o fato é que
a partir da década de 30 do século XIX, este povo vai sendo cada vez menos
citado em documentos oficiais, até simplesmente deixar de aparecer em qualquer
menção no século seguinte. Porém, apesar de não serem mais citados, os Puri
permaneceram vivos, e a região de Resende, onde se localizava o antigo
aldeamento é ainda hoje chamado de Aldeia, e no ano de 2010, somente naquele
município 114 pessoas espontaneamente se identificaram na pesquisa censitária
do IBGE como pertencentes ao povo Puri. E além dos Puri do Rio de Janeiro, em
Minas Gerais se encontram mais de uma centena de pessoas que se identificam
como sendo Puri ou descendentes, existindo nesses dois estados em curso
movimentos de retomada e reconhecimento de territórios ancestrais.
Sobre
a população Puri de Minas Gerais, temos ainda menos dados, e daí por outra
incidência de apagamento: não foram ainda estudados, e assim, ‘oficialmente,
não existem’).
Quadro de John Jaimer Morales |
Pois
sim, é disso que se trata também. Eu por exemplo, não tenho como ignorar, seja
no espelho, seja nos olhos dos que me olham com dúvida, o fato de que eu, assim
como vários de meu povo, não possuímos os traços fenotípicos comumente
associados à ideia de uma "aparência indígena". Mas também não estou
entre aqueles que possam esquecer que os reais motivos pelos quais há, no
Brasil, tantos indígenas e negros de peles de tom mais claro, de madeixas
loiras e olhos claros são o rapto e estupro de milhares de mulheres. Não posso
esquecer, justamente porque na minha linha de ancestralidade, existem mães,
avós e bisavós minhas 'pegas no laço' e 'acuadas por cachorros', dentre elas,
Prucenví, a mais famosa, que para ser contida 'precisou ser segurada por mais
de 10 homens'. E sim, talvez quem acompanhe essa leitura, também se lembre de
uma avó ou bisavó sua, com uma história parecida. Pois estas são as bases da
história brasileira.
Mas,
ao contrário da expectativa de provocar, mediante essa 'miscigenação' forçada e
violenta, fazer dissolver os Puri em uma massa informe de 'caboclos', os Puri
têm resistido, e, se são testemunhos vivos de uma violência que se inscreve em
suas peles, se mostram mais fortes que ela, ao manterem-se íntegros na
invocação do orgulho de seu pertencimento originário.
Quadro Jaime Trindade |
Raial Orotu Puri, é indígena do povo Puri. Graduada em Direito pela UNIDESC e doutoranda em antropologia pela UFPR. Atualmente está radicada em Rio branco-Acre, onde atua como Chefe de Divisão no IPHAN/AC. Raial também contribui como assessora jurídica da Federação do Povo Huni Kui do Acre (FEPHAC). Grande divulgadora deste blog, deu-nos a honra de contar com suas contribuições a partir desta primeira postagem.
* O nome Puri é uma
designação de cunho pejorativo, que teria sido atribuído pelos vizinhos, não
necessariamente amigáveis, os coroados; o significado da palavra seria algo
como ‘gentinha, gente miúda, povo fraco’. Apesar desses significados
depreciativos, Puri acabou sendo o nome assumido como etnônimo, sem grandes
recalques daí derivados. (Minha avó costumava dizer que era ‘pura intriga da
oposição’...)
Gratidão pela partilha, Jairo, de texto tão necessário, como esse da Andréa Puri, a quem passo a admirar e com quem aprofundo laços de solidariedade e irmandade. Texto pedagógico, educativo, desses que deveriam mesmo juntar-se aos teus, para compor uma valiosa publicação impressa. Gracias.
ResponderExcluirOi, Eurilinda, muito obrigada pelo retorno positivo e o incentivo... E pode ter certeza de que a recíproca de afeto e admiração é verdadeira.
ExcluirOlá Eurilinda,
ResponderExcluirÉ sempre um prazer partilhar estes textos com todos os que tem interesse. Quando teremos um seu?
Quanto a usá-lo, é algo que eu tenho que conversar com a Raia sobre isso, mas certamente irei publicar meus textos algum dia.
Toro para que pessoas interessantes como a Raial continue a escrever...
Gente...esse blog tem que virar um livro! nós precisamos disso disponível de todas as formas.
ResponderExcluirEssa linda mulher que escreveu passa uma força, uma certeza de quem é, ela é a prova da resistência do seu Povo.
Parabéns querida você é Puri! é gente grande!
Muita gratidão
Obrigada pelas belas palavras, Flor.
ExcluirE total apoio à sugestão de que os incríveis textos do Jairo se tornem livro, acessíveis de todas as formas, e que as palavras dele possam chegar ainda mais longe do que têm chegado.
Sou Opetahra Puri, gostei muito deste texto.
ResponderExcluirParabens tsate!!! Ótimo texto!!!
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