Mulheres Noke Koi - Foto: Ag. Notícias do Acre |
Ontem recebi a visita de um grupo de índios do povo Noke
Koi (Katukina) que, entre outras questões que precisavam discutir, me
perguntaram a respeito de um certo site, cujo endereço consta em um país
estrangeiro, de venda de produtos e medicinas indígenas que utiliza o nome
deste povo.
Também ficaram impressionados com certos produtos que,
segundo o site, são oriundos deste povo, como por exemplo, curipes e rapé.
Entrei no site e, após uma rápida leitura do seu
conteúdo, expliquei para eles a situação orientando-os sobre os devidos
processos legais referentes à questão, alertando, claro, sobre a enorme
dificuldade de se fazer algo contra sites em outros países.
Essa mesma reclamação, sobre este mesmo site, me foi
apresentada por algumas lideranças dos povos Yawanawá e Huni Kui.
Situações como esta, ao contrário do que possa parecer,
não é tão incomum, no que se refere aos conhecimentos e patrimônio material e
imaterial dos indígenas amazônicos, sendo muito fácil encontrar produtos ditos
“indígenas” em sites tanto no Brasil quanto fora deste.
Fiz uma busca rápida na internet e pude constatar, para
minha infelicidade, que o comércio do sagrado indígena acreano é o campeão de
ofertas. Nestes, podemos encontrar sananga, rapé, kambo, e seus respectivos
acessórios para aplicação. Topei com outros produtos também, como mudas de
chacrona e de jagube (respectivamente folha e cipó, base do preparo do huni).
Observo que a mercantilização destas chamadas “medicinas”
atingiu um nível quase industrial, contando com todo um aparato visual de
apresentação do produto. Incrível. O mais interessante, pelo menos pra mim, é
saber que as lideranças das terras indígenas, de onde supostamente os produtos
seriam oriundos não têm conhecimento sobre a produção ou exportação destes.
Claro que todos estes não possuem certificados de qualidade, prescrições, nem
orientações quanto ao seu uso.
Estes atravessadores (ou usurpadores) das medicinas
sagradas buscam somente o ganho financeiro com sua prática, não havendo retorno
destes ganhos para as comunidades que, supostamente, fornecem estes produtos.
Essa situação é mais uma face do chamado “mercado
xamânico”, que vem a reboque da expansão da informação e do acesso aos rituais
indígenas, principalmente ligados ao uso do chá sagrado.
- É o tempo da cultura, txai. – Alertou-me a querida Dede
Maia, em uma de nossas muitas e prazerosas conversas.
Entendo e concordo plenamente.
Não vejo nada demais nesses rituais, desde que executados
de maneira responsável, por
indígenas
iniciados ou já conhecedores da tradição. Até porque “pajés” mesmo são
poucos, na verdade, pouquíssimos. Também não posso deixar de advertir que o uso
do termo “pajé”, pelos iniciados e curadores indígenas, é para que os nawa
compreendam e tenham certa referência do status que os mesmos representem,
pois, a compreensão de como funciona o “sagrado indígena” seus rituais e
divisões seriam por demais complexos para um entendimento geral e, em alguns
casos, acima até do entendimento dos mais jovens iniciados que ministram
rituais, Brasil afora ou em outros países.
Jovens Puyanawa - Foto: Marco Iusten |
Comumente vejo propagandas das assim chamadas “clinicas”,
ou de “centros de terapia”, ou de “centros de iluminação” divulgando rituais ou
“rodas” de imersão no “sagrado” disso ou daquilo. Legal, beleza mesmo. Afinal,
isso não deixa de ser uma valorização da cultura dos povos indígenas.
O problema, a meu ver, se dá quando estes locais passam a
assumir protagonismo nestes rituais, com seus gurus e “terapeutas” que se
apresentam com conhecedores e portadores de saberes sagrados, repassados pelos
“guardiões” indígenas. Também vejo como preocupante a elevação automática de
jovens iniciados indígenas à condição de xamã, pajé ou “guardião” dos saberes
sagrados de seu povo, quando se encontram em viagens para divulgarem seus
rituais.
A necessidade de se ter gurus ou mestres que ajam como guias neste mundo material e no mundo espiritual é algo inato do ser humano, perfeitamente entendível e ponderável. Infelizmente, neste mundo líquido e globalizado que vivemos, por vezes, esta necessidade de certos grupos ou pessoas assumem características bizarras. Mas isso é assunto para outro momento.
Nesse ponto, de realização de rituais com a presença de
curandeiros, cantores de cipó e demais iniciados indígenasm este processo está evoluindo.
Tenho observado isso. Alguns centros e clínicas têm procurado estabelecer
parcerias com as comunidades, propiciando aos interessados rituais e imersões
com quem realmente conhece do assunto, sejam iniciados, sejam os “pajés”. Esse
é o caminho.
Infelizmente, em contraposição a esta feliz iniciativa, tem outras tantas que são altamente perniciosas tanto para as comunidades quanto para os indígenas que se deixam iludir por elas.
Infelizmente, em contraposição a esta feliz iniciativa, tem outras tantas que são altamente perniciosas tanto para as comunidades quanto para os indígenas que se deixam iludir por elas.
Crianças Nukini - Foto: Miriane Teles |
Cada povo tem suas divisões e especializações dos assim
chamados “mestres” do conhecimento sagrado. E o acesso a estes mestres e, por
conseguinte, às suas especialidades só é possível quando se propiciam visitas,
viagens de intercâmbios ou festivais, no assim chamado “etnoturismo”.
Agora a nova empreitada deste mercado é a venda de
produtos do sagrado. Onde está o problema nisso? Em minha opinião, o
problema está em muitos pontos dessa iniciativa, como, por exemplo, o ganho e a
utilização indevida dos nomes dos povos indígenas em seus produtos, ou a falta
de uma discussão ampliada em que se estabeleça a regulamentação deste mercado,
tanto no que diz respeito à qualidade do produto quanto à certificação de
procedência dos mesmos. Afinal, é importante citar que o kambô, quando
administrado erradamente pode, ao contrário do que alguns possam afirmar,
matar. Ou uma sananga, quando estragada, pode causar sérios problemas oculares.
Isso sem contar dos produtos falsos e placebos que andam circulando por aí.
Por isso, garantir esse reconhecimento e regulamentação
contribui tanto para a saúde material e espiritual do usuário, quanto para a
proteção jurídica e social tanto da comunidade quanto do indígena que produz
tal medicina.
Utilizar nomes ou vender as medicinas sagradas ou produtos
sem conhecimento das lideranças e comunidade, nada mais é que roubo de
conhecimentos e bens culturais dos povos tradicionais. Costume ocidental,
predatório e colonialista que visualiza tão somente o capital que isso gera e
não a evolução espiritual alardeada pelos mesmos.
Pergunto: será que esse fenômeno ocorre em outros povos
fora da Amazônia? – Quem souber a resposta eu agradeceria se me informasse.
Acho válida e até fomento a iniciativa de lideranças que
estão em busca de ações legais contra sites e demais focos de vendas de seus
produtos sagrados. E essa situação me faz pensar a necessidade de apoio
jurídico mais especializado nesses processos, uma vez que a maioria destes
“mercadores” nawa atuam em sites fora do país. É preciso combater essa pirataria.
As associações comunitárias devem estar atentas para
isso, buscando parcerias jurídicas e
cobrando dos órgãos afins as providências
necessárias para a proteção de seus bens materiais e imateriais. Os que se
consideram parceiros das comunidades, que lutam pelos direitos indígenas devem
apoiar este movimento, devem apoiar a proteção destes bens.
Huni Kui - Foto: Ion David |
Os centros, clínicas e sites que se consideram sérios e
de respeito devem qualificar cada vez mais seus contatos com as comunidades e
as lideranças destas, de maneira a garantir a procedência e a qualidade do que
oferecem ao seu público e os devidos ganhos às comunidades. É bom lembrar que
existe uma coisinha chamada “contrato” e, por isso, deve ser cada vez mais
usado para estabelecer estas relações.
É preciso ficar de olho, pois tem muito espertinho e
charlatão usando o nome dos povos indígenas.
Este Acre varonil, terra de Galvez e república
independente no inicio do século XX, que serve de lar para mais de quinze povos
indígenas, ricos em cultura e conhecimentos sempre foi o berço de iniciativas
pioneiras. Acredito sim que vivemos o “tempo da cultura” e, luto para que esse
tempo seja valorizado, divulgado e devidamente resguardado.
Este mês de novembro começou com chuvas e com
articulações diversas, tantos de indígenas quanto de organizações indigenistas,
pois, neste mês, ocorrerão no Juruá, as assembleias das organizações regionais
indígenas e o encontro dos professores Huni Kui. Na pauta, em comum destes
grupos está a reflexão sobre como está sendo divulgado e usado os conhecimentos
tradicionais dos povos indígenas. Estarei presente nestes eventos, com certeza.
Finalizo ressaltando que ainda não se dissipou o mal
estar e os problemas surgidos por causa deste “encontro mundial de coisa
nenhuma”, que ocorreu recentemente. Pelo menos, este serviu para mostrar às
lideranças que ainda não é possível confiar nos nawa, e que não aceitarão
imposições e posturas de uns poucos. A questão indígena e o seu sagrado é algo
sério, que deve ser discutido com seriedade, por quem entende e se interessa
verdadeiramente pelo assunto.
Jovem Marubo - Foto: Ethnoatlas |
Sei que ainda teremos noticias sobre esta perigosa e
falsa iniciativa “científica”, bem como, aproveitando o momento, já lanço ao
ar, para que os ventos do Juruá espalhem pela região, a informação que está se
discutindo a realização de uma “conferência” indígena sobre o assunto, essa
sim, verdadeira, grátis e inclusiva, sem segundas ou falsas intenções.
Deixo por fim, a mensagem que recebi do meu querido
“padrinho” e tutor, o saudoso, Inka Muru Huni Kui, em uma entrevista, em minha casa, para um de
meus estudos, registrada no inicio dos anos de 2005, em que alertou: txai, não
se brinca com o huni, não se brinca com o mistério do yube. Os que fazem isso
estão se embrenhando um mato cheio de espinhos e insetos venenosos. Estão
sujando seu yuxin com as imundícies desse mundo. Tem que se libertar disso sabe
txai. O nawa vive sofrendo nesse mundo, aprendendo só com a dor, pois é só como
ele entende que deve mudar seu jeito de ser.
Precisamente...
Para os que entenderam a mensagem, não
precisa de complementos.
Boa semana a tod@s,
Jairo Lima
Olá Jairo, conheci seu site hoje pesquisando sobre o Kambô. "Encontro mundial de coisa nenhuma" define bem, ando lendo bastante sobre esse evento de merda, e é muito revoltante toda essa situação. Quando tiver mais notícias sobre esse genuíno encontro indígena, caso possa, nos mantenha informados. Abraços e parabéns pelo site!
ResponderExcluirOlá Juliana, com certeza, informarei a todos sobre este encontro. O assunto será tratado nas assembleias e agendas que eu citei na crônica de hj.
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