Por: Jairo Lima
Sempre que dou alguma palestra, ou atendo estudantes e
pesquisadores que buscam saber sobre os povos indígenas do Acre, costumo usar a
metáfora do “continente europeu”, para me referir a estes povos. Explico:
Imagine o continente europeu e seus países, com seus povos e aspectos
culturais. O que eles têm em comum? Bem, todos estão na Europa. Falam a mesma
língua? Bem, alguns sim outros não. Todos tem o mesmo aspecto cultural? Não,
alguns até tem aspectos parecidos, mas outros têm aspectos totalmente
diferentes.
Pois bem. Da mesma maneira é nosso Pindorama e, em menor
escala, o Acre indígena, que tantos povos abrigou no passado e, atualmente,
possui mais de trinta e quatro Terras Indígenas, onde habitam dezesseis povos.
A cultura destes possuem pontos em comum e outros totalmente singulares. Tal
qual o velho continente.
Esse preâmbulo todo é para focar em um ponto central que,
acreditem, ainda é de desconhecimento da grande maioria da população acreana (e
do Brasil, seguramente): os povos originários (que chamamos índios) não são
todos iguais! Parece lógica e clara esta afirmação, mas acreditem, esta lógica
e clareza não se estende a todas a mentes, infelizmente.
E o que torna esta diversidade tão rica e maravilhosa são
justamente as singularidades que compõem esse mosaico cultural.
Em geral vemos comumente nos filmes, novelas, revistas e
outras formas de comunicação de massa, referências ou deferências em relação a
aspectos culturais de algum país estrangeiro, aspectos que, em muitos casos,
passam a ser imitados, principalmente pela juventude, ou incorporado a certos
hábitos e costumes dos mais velhos. Isto é visto como um processo de
“refinamento” social, uma evolução cultural, uma mostra de superioridade. Tem
também, os costumes ditos “exóticos”, que passam a ser replicados como mostra
de uma fina interação entre o ser humano contemporâneo e o “primitivismo”
essencial à sua existência.
Temos vários exemplos disso: yoga, meditação budista, ritual
do chá japonês, terapias com ervas; vestimentas indianas; calçados australianos; comer insetos; não comer certas carnes; jejuar; fazer dietas. etc.
Em maior ou menor grau, todos, inclusive este que vos
escreve, acaba por incorporar à sua cotidianidade material e espiritual um
retalho de excertos culturais adquiridos de maneira consciente ou incorporados
inadvertidamente.
Pois bem... e se eu dissesse a você, caro leitor, que
estes mesmos aspectos refinados, tradicionais e superiores estão perto de você,
ao seu redor? Que estes aspectos estão em sua cidade, logo ali, perto de você?
Onde? – Fácil esta resposta: nestes países que são
chamados de “terras indígenas”, onde habitam culturas complexas e ricas de
povos que são chamados “indígenas”.
Conhecer cada cultura, seja em seus aspectos primordiais,
seja de maneira profunda, é acima de tudo uma experiência transformadora, pois,
descobre-se todo um novo mundo. Mundo este muito similar àquele que vemos como
“a moda do momento” em nossa sociedade.
Toda esta reflexão foi para apresentar um livro que me
chegou às mãos, cujo título é “Ashaninka: O poder da beleza”. Publicação do
Museu do Índio, focada na cultura material e imaterial deste povo, que,
no Brasil, habitam quatro terras no Acre, às margens dos rios Tarauacá, Envira
e em afluentes do Juruá como os rios Breu e Amônia. Sendo a mais conhecida, a
Terra Indígena Kampa do Amônia, lar de figuras muito conhecidas como Benky
Piyanko, o prefeito recém-eleito Isaac Toto Ashaninka e que, através de seus
projetos e parcerias, tem expandido o nome deste povo muito além dos ventos
tropicais deste país. Dê uma “googleada” que você entenderá o que quero dizer.
Este livro é um material bonito, resistente e com a
excelência típica das publicações do Museu do Índio, com imagens maravilhosas e
textos pontuais que abordam os aspectos culturais primordiais deste povo.
De cara, o que me chamou a atenção foi o fato de que a
maioria das imagens não são coloridas. Esse detalhe causou-me estranhamento, no
entanto, ao passo em que mergulhei na leitura e analisei das imagens (pois é,
sou do tipo que usa lupa para melhor observar alguns detalhes), entendi a arte
das mesmas, bem como a utilização constante da cor negra e sua sincronia com a
simbologia e mitos deste povo. Perfeito.
Cada aspecto cultural deste povo, que certamente possui um
grau altíssimo de refinamento e estética é abordado de maneira leve, direta sem a
profundidade e o detalhamento das teses e demais publicações oriundas destas,
que não são acessíveis ao entendimento de todos, sendo a leitura um esforço
prazeroso somente para quem tem interesse no tema.
O foco é na sua arte corporal, onde se apresenta todos os
objetos fabricados e utilizados por eles, bem como a relação entre estes e com
o corpo, os mitos, etc. E que giram ao redor dos dois grandes eixos em que gira
a cosmovisão Ashaninka: a procura pela imortalidade e a fragilidade do amor.
Este material traz ainda uma singularidade muito
especial: a apresentação da cultura é feita, em sua maioria, por imagens e
narrativas coletadas junto às aldeias localizadas no Alto Rio Envira. Uma
preciosidade principalmente devido ao fato que alguns destes narradores já não
se encontram materialmente entre nós.
Não posso deixar de registrar que, mesmo tendo contato há
muitos anos com este povo, ler este material esclareceu-me algumas dúvidas que
ainda tinha ou entendimentos que há muito havia esquecido. Afinal, trabalhar
junto a muitos povos, como é o meu caso, por vezes atrapalha nossa memória
imediata para todos os detalhes de cada cultura.
Assim, para quem tem ou já teve contato com eles, ler
este material é muito bom para entender alguns aspectos que de cara chamam a
atenção como, por exemplo, as vestimentas e os adereços utilizados. Para
aqueles que já tiveram a oportunidade de visitar uma aldeia Ashaninka, é a
oportunidade de entender certas singularidades que tenham observado, como
algumas atitudes cotidianas, tanto de homens quanto de mulheres.
Por exemplo, posso citar o costume diário de meditação,
comum e necessário à existência e postura material e espiritual de um
individuo. Assim, o Ashaninka costuma, ao final da tarde, sentar-se voltado para
onde nasce o sol, a fim de meditar, ficando em silêncio, pois, segundo a
cultura destes, “é o silêncio que ensina”,
assim como, uma vez que são filhos diretos de Pawa (Deus solar) é preciso parar e ficar em silêncio para poder ouví-lo.
O entendimento sobre o Kitarentse (cushma – vestimenta
tradicional) e demais adereços mostra o respeito com que tratam cada detalhe de
sua confecção, estando esta intimamente ligada a este ser bidimensional (ser
material e espiritual), onde qualquer erro ou desleixo em sua confecção pode
trazer sérias consequências para o equilíbrio deste ser.
Para quem não teve nenhum contato proximal com eles, a
leitura não deixa de ser instigante, pois toca em aspectos que facilmente o
leitor irá associar a referências que acreditava ser única de povos “doutras
terras”, como, por exemplo, as simbologias das imagens como expressão pessoal e
canal de energização mística. Cita-se como exemplo a pintura facial, que pode
expressar não só a postura em que o indivíduo possa estar em relação ao seu
meio social, em determinado momento, como, também, assume importante fonte de
comunicação mística com os espíritos diversos da natureza ao redor e da morada
mística dos seres venerados por eles.
Materiais como este contribuem para mostrar um lado da
cultura destes povos, um lado muito rico e sedutor, além do horizonte
visualizado por muitos que vem ao Acre, que veem ou se interessam somente na
chamada “cultura ayahuasqueira”. E nisso afirmo que, pautar seu interesse e
contato somente em uma característica em particular, como esta, é nadar em um
mar de belezuras e maravilhas poucos metros abaixo da superfície e que não são
vistas porque se tem preguiça de mergulhar um pouco.
É um material que vale a pena adquirir e, pessoalmente,
além de ter sido prazeroso reforçar um pouco mais meu conhecimento sobre os
Ashaninka, também traz algo misterioso, pois venho ajudando a organizar as
memórias do meu querido e venerado Txai Antonio Macedo, sendo que este livro
chegou-me às mãos justamente no momento em que estou organizando o capítulo em
que este txai narra seu contato e trabalho com este povo, nos idos do ano de
1985.
Fico feliz pelo livro e por tudo aquilo que ele me fez
reviver, bem como pelos esclarecimentos que deram nexo ao mosaico de
conhecimentos, vivências e experiências que tive ou sobre as quais ouvi falar.
Finalizo retomando minhas próprias lembranças das viagens
realizadas às aldeias deste povo. As tardes de meditação, mascando coca e em
silêncio. As noites mágicas com o Kamarãpy, elevando nossos espíritos nas asas
do japó sagrado. Das festas de Piyarentsi, onde vamos de casa em casa dançando,
tocando, cantando e bebendo caiçuma (piyarentsi). Das risadas agudas e altas
das tsinani (mulheres), com suas cushmas
coloridas e sonoras por causa dos enfeites com sementes. Do cheiro forte de
assado. Da amizade verdadeira e fraternal de todos. Das reuniões sobre a
organização da comunidade... tantas lembranças.
Sempre me chamou a atenção a estética diária deles,
sempre buscando estar bem alinhado, pintando-se diariamente e, no caso das
mulheres, “retocando” esta pintura durante o dia, a gente fica com a impressão
que vai ter festa, mas não, é apenas o cuidado pessoal do dia-a-dia.
É isso...
Fico feliz em saber que faço parte de um grupo que vem
crescendo, um grupo que posso chamar de privilegiado por ter contato com estes
povos e sua cultura. Um grupo que não se faz de cego ou “olha para o outro
lado”. Um grupo que ainda sente prazer em ser parte de uma comunidade, de um
coletivo onde as amizades desinteressadas são importantes. Um grupo que se
identifica com a interação com o meio ambiente, com o cosmos que este representa.
Capa do livro |
Um grupo que, acima de tudo, entende a necessidade de
cada vez mais voltarmos às nossas origens naturais, e que, para isso, não fica
parado, só pensando, pois como bem está registrado nesse livro, nas palavras
sábias do querido amigo Benky Piyanko: Se
o equilíbrio, por exemplo, ecológico é quebrado o mundo faz sentir isso, dá
advertências, avisos (...). Pensar, refletir é muito importante, mas não se
pode esperar demais para fazer as coisas.... nossa cabeça é como o mundo, e o mundo
é como nossa cabeça.
Boa Semana a tod@s,
* Todas
as imagens utilizadas neste texto foram retiradas do livro Ashaninka: O poder
da beleza
** Para
maiores informações de como adquirir este material entre em contato com o Museu
do Índio.
Alaga lembranças das minhas andanças... Aguça vontade de ler o livro! Delícia de texto...importantes informações compartilhadas Jairo! Fãzona sua!
ResponderExcluirPois é Dedê, as lembranças que guardamos destas belezuras e formusuras que vivemos é o que nos move, é o que nos transforma em pessoas diferentes das demais...
ResponderExcluirBelo texto Jairo como sempre maravilhoso estou curiosa para ler o livro, mas principalmente para ver as imagens....amei essa frase que usou ao responder o comentário da sua amiga Dedê .... As lembranças que guardamos...é o que nos move.Perfeita. Tenho acompanhado os comentários e o texto da Dedê no seu blog e no face e as palavras dela são tão encantadoras quanto às suas , vcs escrevem com o coração e com uma leveza que nos toca a alma.Parabéns!!!!
ResponderExcluirHursilene, realmente as lembranças são o que mais nos movem e confortam. As vivências, os sentimentos, alegrias, tristezas, derrotas e vitórias. Tudo isso nos move sempre. Fico feliz com suas palavras e grato pela leitura. Gosto muito da Dedê e das palavras que ela escreve (e me fala) nos momentos que temos contato. abraços.
ResponderExcluir