segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

SOBRE ZIRIGUIDUNS, PRECONCEITO E APROPRIAÇÃO CULTURAL...

Fonte G1
Por: Jairo Lima

Teve um assunto que andou gerando arengas e quizumbas nas redes sociais – que a cada dia ficam cada vez mais antissociais – e que serviu de mote para muitas postagens de protesto e outras tantas puramente retóricas: apropriação cultural. Isso tudo gerado pelo fato de uma jovem, em tratamento contra o câncer, ter usado um turbante para disfarçar a falta de cabelos, primeira baixa em qualquer tratamento mais agressivo para esta triste moléstia humana.

Creio que faltou discernimento e bom senso em muitas destas postagens feitas nas ditas redes. Postagens estas que, em grande parte, confundiram aspectos fundamentais de uma cultura, com aspectos estéticos que lhes dão forma. Mas sem desmerecer essa discussão do turbante, até porque, em alguns nichos, este tema é um assunto que faz parte de um debate sério sobre aspectos fundamentais da identidade cultural de um grupo, faço o link disso com outros assuntos que sempre me chamaram bastante atenção, mas, claro que nem de longe mobiliza ou causa cismas como o caso da indumentária citada.

Claro que estou falando da questão indígena. Mais precisamente da macaqueação que vemos ocorrer comumente em nossa triste Pindorama. Principalmente nestes dias de festividades carnavalescas que antecedem a Quaresma. São observações muito pessoais de minha parte e que possivelmente não encontrarão eco, mas que não poderia deixar de citar, aproveitando o feriadão festivo (para alguns).

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

O MUNDO NÃO ACABOU. OU TALVEZ SIM...

"Cabeça encolhida", artefato munduruku
Por: Raial Orotu Puri

A última quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017 foi a data em que se previu o primeiro fim do mundo deste ano, muito provavelmente não o último, visto a recorrência com que esses eventos são informados através da mídia. Aliás, são tantos os eventos que eles são recebidos inclusive de forma um tanto quanto jocosa, e já sem a pomba, circunstância e apreensão das ocorrências mais célebres, como a passagem de 1999 para 2000 prevista por Nostradamus; ou às 2h14min do dia 29 de agosto de 1997, quando a Skynet se tornaria autoconsciente e desencadearia o apocalipse nuclear; ou ainda o dia 12 de dezembro de 2012 do calendário Maia. Bom, aparentemente as previsões até hoje estavam erradas e o mundo não acabou. Ou talvez sim. Quem garante, não é mesmo?

Há que se considerar a possibilidade de um sim. De um mundo já findo, há muito tempo. E de estarmos em uma espécie de limbo, tártaro, ou qualquer outra coisa, seja lá o que for que constitua essa pretensa realidade no qual estamos mergulhados, sabe-se lá há quanto tempo. Aliás, ‘realidade’ talvez seja um adjetivo forte demais para conceituar isto que vivemos, dado os inúmeros contextos onde o inacreditável parece brincar com os limites entre o que é possível, aceitável e razoável de se aceitar sem necessariamente afrontar o tênue equilíbrio das coisas.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

NIJA MADIJA!!!: Notas sobre suicídios entre os Kulina

Mulher Madija - Foto: Purus On Line
Por: Domingos Bueno

A gasolina e o capeta

“Nija Madija”!!! (nirrá madirrá) - É uma daquelas frases emblemáticas que identificam, em qualquer sociedade, traços característicos que remetem a mundos complexos, e no caso dos Kulina à cosmologia, ao xamanismo, a organização social, as atividades cotidianas, enfim, falam muito mais do que as simples palavras dizem.

Em acreanês poderia ser traduzido por: Bora, gente!!! - onde nija significaria “vamos” e Madija aqueles que “são gente”, a “própria gente”, e por extensão “todos aqueles que são gente”.

- Bora, gente! - Significa irmos juntos, a gente, nós que somos gente, que vamos juntos conversar, construir, pescar, plantar, guerrear, cantar, sofrer, enfim, todo o sentimento de coletividade e pertencimento associado ao ser Kulina (Madijá). Essa gente musical, forte e absolutamente etnocêntrica (assim como nós...), já foi um dos mais numerosos povos de uma região, que vai do sul do Amazonas, passando pelo Acre e fronteiras com Peru e Bolívia.

Entre minhas lembranças da visita à aldeia de Santa Júlia no Rio Purus, em novembro de 1996, a mais intensa é a da sonoridade cotidiana, composta pelos cantos das mulheres nas casas, que às vezes construíam, umas com as outras, um contraponto melódico incidental ambiental.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

O TRISTE DOER DE UMA MORTE NO RIO ENVIRA...

A super lua - Foto: Assis Kaxinawá
Por: Jairo Lima

Parecia um dia como outro qualquer. O rio barrento mostrava vazante, quando as monções torrenciais dos últimos dias davam uma trégua. O barranco ainda estava bastante enlameado, mas já mostrava firmeza suficiente para que fosse possível subir sem se arriscar a um tombo bem feio e sujo.

O dia não estava quente, nem frio. Depois de dias de chuva, os pássaros cantarolavam suas melodias numa “bagunça” de gorjeios por vezes indefiníveis.

Alguns nawa apareceram, subindo o rio com grande algazarra, pilotando seu batelão com certo descuido. Pararam na aldeia e ofereceram trocar umas “botijas”* de cachaça pelo que tivesse de carne. O negócio foi feito escambiando sete botijas por sete jabutis: “nawa estúpido e burro! Bicho tem um monte por aqui, mas bebida não!” – devem ter pensado os parentes ao fecharem o negócio. Este tipo de escambo era normal, afinal, esse nawa são vizinhos da terra indígena, dividindo com estes a solidão e a imutabilidade cotidiana de se viver em locais tão isolados.

A festa depois foi muito boa, e no mesmo dia todas as botijas estavam devidamente consumidas e jogadas em algum canto do terreiro.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

DESCONEXÕES POLÍTICAS E ESPECIFICIDADES INDÍGENAS

Autor: Lu Lacerda
Por: Raial Orotu Puri

“A gente tem de parar de trazer veneno para dentro da nossa comunidade, porque as coisas que vêm de fora, elas são veneno. O açúcar é veneno, o sal é veneno, a bebida é veneno... essas coisas prontas que a gente come, a carne com hormônio, o óleo que a gente põe na comida, isso é tudo veneno, e faz mau para nós. Por isso a gente pensou em criar a cooperativa, também para dar independência para a gente não ficar sempre no cativeiro dos donos de estabelecimentos comerciais que retém os cartões, e mantém todos nessa escravidão, como era antigamente, no tempo da seringa”. Fabiano Sales Huni Kuin.

Ouvi essa fala na tarde de ontem, numa reunião na Assessoria Indígena, quando o Huni Kuin do Jordão apresentava a algumas pessoas a ideia que tiveram da criação de uma cooperativa no Jordão, destinada tanto a fomentar a produção quanto a libertar os indígenas do ‘aviamento’ moderno que se instalou no Acre - e pelo Brasil afora – a partir da instituição de alguns programas sociais, notadamente, o Bolsa Família.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

SOBRE PARCERIAS E A BICHOGRILISSE DO MAL...

Jovem Huni Kui - Foto: Paula Lima
Por: Jairo Lima

- Pega txai, bebe aqui esta medicina que eu fiz, é um remédio bom pro estômago! – Disse-me meu interlocutor entregando-me um frasco escuro. Sinceramente não lembro o nome dele, pois estávamos em uma reunião com um bocado de gente numa sala. Peguei o frasco, abri, cheirei tentando reconhecer através do olfato as ervas e demais ingredientes deste remédio. O aroma me dizia que a base de feitura era cozimento de huni (ayahuasca), provei com a ponta da língua o sabor e, sorrindo, devolvi o frasco sem beber seu conteúdo.

Não tenho uma desconfiança natural, ou seja, não deixo que meus pré-conceitos (não confundir com preconceito) interfiram nas possibilidades de ampliar meus conhecimentos, ou cerceiem a possibilidade de comungar do sagrado com outras pessoas. Acontece que após tantos anos, aprendi com muitos mestres e com minha experiência pessoal, que a busca por conhecimentos (ou por mim mesmo), ou a busca pela saúde do meu corpo e mente não significa necessariamente “topar tudo” ou “experimentar de tudo” logo de cara. É preciso primeiramente estar necessitando e, em segundo e mais importante, saber o porquê de estar necessitando.

Acredito que nosso corpo reflete o que se passa em nosso espírito, de maneira que os desequilíbrios que por vezes nos afetam física e psicologicamente tem, em parte, sua origem e/ou cura nas “panemas” que nos desequilibram e desarmonizam nosso yuxin, nos afastando da relação com a natureza que nos gerou.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

SOB O ENCANTO DA SERPENTE DO CAPITAL

Por: Daniel Iberê M’byá Guarani


Estava um velho pajé sentado sob uma árvore. Tristeava, em uma longa noite como esta que já dura séculos. Densa era a neblina, escura era a noite. Seus olhos ardiam como fogo perpétuo, triste e só, chorando calado o fim de seu torrão. E, no choro, o fogo negro de seus olhos recrudescia como terríveis faíscas sobre o espaço ocupado. E por estar triste e só, é que soube ler o voo do gavião, que trazia entre suas garras uma serpente enrodilhada, enquanto cortava o ar, certeiro, seu canto imponente. Sentado estava e ergueu-se... Saiu da morte lenta das selvas enlutadas, aprendeu o idioma das chamas, conversou com os silêncios, decifrou o murmúrio do rio, forjou-se como a uma grande lança, envolveu seu coração com a pele do puro animal que nele habita, tocou as entranhas feridas de seu solo sagrado, juntou, do mais duro e mais profundo, cada pedaço agredido, cada vestígio de alma sobrevivente, os olhares e mãos maltratados, e já não estava só no andar sem ruídos, na presteza segura de cada movimento. Era todo um continente! A terra, vermelha e liberta, a rubra chama que a morte não verá extinta. E a noite escura, que antes era eterna, tornou-se manhã, riso, primavera... Wakau’wã é o gavião em Guarani. Pássaro encantado, máscara negra, olhos da mesma cor, pintados para a guerra. Olhar certeiro, voa alto e tudo vê, guardião dos mistérios do pajé. Quando o pajé fala, todos escutam – O wakau’wã, pássaro primeiro, canta para o pajé escutar... Em longos rituais, dias inteiros, chuva e sol, vento e noite, as profecias de wakau’wã. Agora, permanece calado o canto alegre do pássaro combativo, pousado sobre os galhos altos, de onde olha os seres e os humanos.
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segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

ARTESANATO INDÍGENA: Entre a tradição e a "demanda de mercado"...

Artesanato Yawanawá
Por: Jairo Lima

O “inverno” amazônico está em pleno auge, trazendo chuvas e alagações recordes no Juruá, desabrigando muitas famílias e trazendo prejuízos nos roçados de algumas terras indígenas da região.

Nesta semana estará ocorrendo, na Terra Indígena Puyanawa, o II Encontro da Associação de Artesãos e Artesãs do Juruá, que reunirá participantes de mais de vinte terras indígenas.

Como parte da preparação e planejamento deste encontro, participei de uma reunião com os dirigentes desta associação, a superintendência do IPHAN/Acre e a Defensoria Pública de Cruzeiro do Sul. Na pauta, alguns pontos a serem refletidos durante o encontro como, por exemplo, os caminhos legais e jurídicos que possam dar mais segurança ao trabalho e comercialização dos produtos dos artesãos. Esta “segurança” vem ao encontro de evitar situações que, na opinião destes, além dos constrangimentos, trazem prejuízos e discrimina ainda mais os povos indígenas.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

SOBRE FILMES, IMAGENS, FICÇÃO, REALIDADE, OMISSÃO E HIPOCRISIA

Xilogravura de Ulisses Lociks
Por: Raial Orotu Puri

Nos primeiros dias de 2017 vivenciei uma situação bastante curiosa, e que me conduziu a uma longa reflexão acerca das contradições da ‘nossa sociedade’, mais precisamente aquela parcela dos indivíduos que se relacionam dentro do microcosmos azul do facebook, e que, em boa parte, espelha os conteúdos relacionais do mundo externo à virtualidade – acreditem, isso existe!  Em sendo um mundo em miniatura, me parece sempre que ele é como um catalizador dessas relações, que se expressam sempre de forma mais intensa, embora frequentemente sejam também efêmeras. Ódios, amores, revoltas... tudo tende a ser tão potente quanto passageiro.

E foi neste mundo virtual, o qual uso há tempos como ferramenta de trabalho, mobilização e, por que não, entretenimento, que me vi pela primeira vez protagonizando tanto o fenômeno da viralização de uma postagem minha, quanto o posterior ‘castigo’ de um bloqueio de 24 horas, porque o conteúdo postado foi denunciado e considerado impróprio.
Pois bem, a referida postagem tratava-se de uma matéria acerca de atrocidades cometidas contra os povos originários, especificamente aquelas que foram investigadas e compiladas no chamado Relatório Figueiredo, um documento de mais de sete mil páginas, e recentemente recuperado e divulgado, e que apresenta uma parcela dos crimes da ditadura militar brasileira que tiveram por vítimas diferentes povos indígenas.