segunda-feira, 25 de julho de 2016

DOUTOR OU PAJÉ?: O conflito invisível entre a biomedicina e a medicina tradicional...

Desenho Ashaninka
No bairro onde me criei em Rio Branco, antes de levar uma criança ao médico, a primeira coisa que se fazia era levá-la a um rezador ou a uma benzedeira.
Acompanhei minha mãe muitas vezes à casa desse rezador, para que ele afastasse do caçula da família os “quebranto” que minavam sua saúde. Eu olhava e achava muito interessante que, como parte do procedimento da reza, ele segurasse a criança de ponta cabeça na porta de sua casa.
Esse costume de procurar os rezadores e benzedeiras rareia cada vez mais nas grandes cidades, mas era muito comum algumas décadas atrás, por estas bandas da Amazônia, isolada e desprendida do resto do Brasil.

Não nego que, no inicio de minha vida adulta, sempre fui bem mais adepto do contato com os esculápios e seus fármacos do que de mãos milagrosas de velhinhos e velhinhas. Mas, como sempre dizia meu saudoso avô Leônidas: certos costumes de berço não se perdem quando se engrossa os beiços.

Já adulto, e com algumas léguas de indigenismo percorridas, lembro que, por volta de 2001, fui acometido de uma grave alergia na pele. Era uma espécie de urticária que me infernizou por meses sem que fármaco algum resolvesse. Os especialistas médicos que procurei tão pouco abrandavam a situação. Tive medo de ser o tão famoso e famigerado “fogo selvagem”.

E justamente quando a coisa estava crítica, fui escalado para uma atividade na Terra Indígena Praia do Carapanã, lar do nosso grande Prof. Dr. Joaquim Maná. Pensei até em desistir, haja vista a grave situação que me encontrava.
Chegando lá, às vésperas do dia de São João, após o quebra jejum do dia, contei ao Maná o que me acometia e este prontamente me indicou uma senhora da aldeia, bem velhinha que, segundo ele, resolveria meu problema.

E assim, após ser apresentado a esta senhora, ela, munida de um pedaço de cipó que coletou na mata próxima, recitou algumas frases ininteligíveis para mim, enquanto cingia minha cintura com o sarmento que havia colhido. Deu-me algumas instruções e me dispensou sem mais cerimônias.
Após alguns poucos dias de uso, numa manhã, ao acordar, percebi que a tal enfermidade já perdera a força e, no dia seguinte, a mesma desapareceu completamente.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

TXIRÏTI ATSA: O festival da atsa dos Puyanawa


A dança das eras, no jardim das castanheiras - Foto: Cristiane De Bortoli
O grande espírito, em forma de cobra emplumada, enrolava-se em uma dança espiral mágica e multicolor, espalhando pelo recinto suas cores e fragrâncias encantadas. Seu movimento era como uma dança, ritmada e firme, seguindo a cadência da cantiga encantada, entoada por muitas vozes que, vez ou outra, fundiam-se numa só, como se somente uma pessoa estivesse a cantar.
A cada giro dessa estranha dança, histórias eram apresentadas, remontando séculos de memórias. Vozes eram ouvidas contando coisas que, a princípio, eram ininteligíveis, mas que, aos poucos, iam se fazendo entender. Eram histórias mostradas e cantadas sobre feitos fantásticos de lutas, vitórias e derrotas, sobre dias de luzes e um longo período de trevas.
A linda serpente emplumada continuava a mostrar suas memórias. Mostrou como acabou o grande período de trevas e esquecimento, quando quase todo seu encanto se apagou. Mostrou como, nos últimos suspiros e palpitar do coração humano, ela renasceu forte e sábia.
Eu estava ali e a tudo isso assistia, como testemunha silenciosa e encantada pelo que se apresentava à minha frente.
- Txai Jairo? - Alguém me chamou, acordando-me do sonho encantado que estava tendo, fazendo com que desaparecesse a estranha cena que se apresentava. A serpente havia partido e, em seu lugar, surgiu a verdadeira “realidade” do que se passava: um grande grupo de homens, mulheres e crianças pintadas de jenipapo, ostentando plumas, cantando e dançando de braços enlaçados em torno de uma grande quantidade de caiçuma, acondicionada em barris.
E assim, acordei de minha visão encantada, e lembrei que eu me encontrava na maloca de festas do querido povo Puyanawa.

domingo, 17 de julho de 2016

Galeria de Imagens: Festival da Atsa Puyanawa 2016

Abaixo segue uma seleção de imagens, de minha autoria e algumas de autoria da Cristiane de Bortoli, feitas no decorrer dos dias de duração do festival.


segunda-feira, 11 de julho de 2016

MUDANÇAS CLIMÁTICAS: Outros olhares sobre o problema...

O rio Moa, com suas águas escuras e convidativas, parece estar sempre plácido, mesclando-se em perfeita harmonia com suas praias adornadas de pontinhos coloridos que voam em caótica sincronia. Pontinhos amarelos, verde-amarelos, azuis claro, azuis escuros. Rodopiam em loucas revoadas para, em seguida, pousarem repentinamente sobre a areia. São as borboletas que fazem a festa, enquanto se alimentam na praia recém-desvelada pela baixa das águas ferrosas do rio.
Mesmo vendo a cena passando-se rapidamente, enquanto a bajola* vence a contracorrente em direção à paradisíaca fronteira entre Brasil e Peru, não tem como deixar de encantar-se com a visão.

Continuamos subindo o Moa e mergulho em pensamentos diversos, tentando imaginar como era este ambiente na época da visita do padre Tastevin, em 1913. O sol ainda não atingiu seu ápice, o que torna agradável a vista do horizonte, enquanto o vento fresco e revigorante nos refrigera e preenche nossos pulmões com ar limpo e puro.

domingo, 10 de julho de 2016

O CALENDÁRIO KAXINAWÁ

Calendário Huni Kuin 2016
Sabemos que o tempo muda e conhecemos estas mudanças através de nossas matas, nossos animais, nossos rios. Conhecemos o tempo de verão quando chove menos e o tempo de inverno quando temos chuva em abundância. O verão começa em maio e se estende aos meses de junho, julho, agosto e setembro. O inverno vai de outubro a abril.
Quando chega perto do tempo do verão, observamos vários tipos de “avisos” de bichos.  Primeiro flora o pau que nós chamamos de mutamba. Depois canta o bem-te-vi da mata, dizendo que a terra vai ficar dura logo. Depois passa mais um bando de passarinhos de todas as cores: vermelho, azul, amarelo, verde, etc, avisando ao pessoal que a friagem já vem perto. Depois disso, canta o passarinho da noite que nós, Kaxinawá, chamamos shetika. E, após três ou quatro dias, aparece a friagem. São os primeiros sinais do verão.

Então os homens ficam animados e já começam a trabalhar a terra, que fica toda rachada. É tempo de começar a roçar, brocar, derrubar, queimar, plantar banana, macaxeira, milho, arroz, tingui, inhame, batata preta, etc. Depois limpar a praia para plantar mudubim (amendoim), melancia, milho. É também o tempo de começar a roçar as estradas dos seringais para cortar, porque é o tempo bom para extrair o leite da seringueira.

segunda-feira, 4 de julho de 2016

KAMBÔ: É preciso conversar a respeito...

O grande romeya (pajé) Rekan Satanawa – conhecido como Chico véio Katukina – veio me procurar um dia destes, bastante apoquentado e um tanto abespinhado. Por isso pediu pra falar diretamente comigo para, segundo ele, “ter mais uma informação para tomar uma decisão”.
Ele me disse que o motivo de sua zanga era o fato de algumas pessoas da cidade estarem indo até sua casa, pedindo para aplicar o kambô e querendo pagar só um valor módico (não direi qual). Ele não queria atender essas pessoas, e isso fazia com que falassem mal dele na cidade.

A conversa se estendeu, e passamos a falar sobre o processo de tratamento e cura usando esta singular secreção. Fiz muitas perguntas e me encantei com suas explicações e preocupações. Ele me contou sobre o perigo e o descuido com que o dawa (não-índio) trabalha com esta medicina. Inclusive expressou perfeitamente a situação: eles (dawa) não sabem de nada, fazem de qualquer jeito. Não tem estudo, não tem cura, tem só enganação... e um monte de besta acreditando estar se curando.
Rimos muito. A conversa ainda foi longe, e ajudei-o na sua busca de “informação”, e ele me ajudou muito mais em minha eterna busca de “entendimento”.

Assim, embalado por esta conversa e pelo manifesto que o txai Macêdo fez estes dias em seu feed, abordo um assunto que vez ou outra se apresenta e nos impele a refletir junto às comunidades indígenas e a colegas indigenistas.

O foco será o controverso uso da chamada “vacina do sapo”, o kambô.

domingo, 3 de julho de 2016

PHYLLOMEDUSA: Meu primeiro encontro com a medicina do kambo

Sempre tive a impressão de que, para ser um indigenista de verdade, era preciso experimentar tudo o que a cultura indígena oferecesse. Claro que, ao longo dos anos, descobri que esta premissa não necessariamente estava correta.
Assim, entre estes experimentos culturais passei por várias situações inusitadas, que muito me ajudaram a imergir cada vez mais neste mundo indígena.
Abaixo segue a transcrição do meu diário de campo, de 2004, quando tive meu primeiro encontro com as propriedades curativas da famosa “vacina do sapo”, o kambô.

Motivado pela curiosidade em saber qual a sensação proporcionada por este veneno natural que está causando tantas discussões e luta por direitos entre indígenas e não indígenas resolvi experimentar as propriedades de tão exótico produto da natureza. Assim, num domingo eu e Chere nos dirigimos para próximo do posto de saneamento da aldeia (uma espécie de banheiro) na comunidade. Havia bebido dois copos grandes de água co açúcar, pois, segundo Chere me instrui, isso serviria para “ajudar a diluir todas as coisas ruins que tiver no corpo ou dentro dele”.