Mulher Madija - Foto: Purus On Line |
Por: Domingos Bueno
A gasolina e o capeta
“Nija Madija”!!! (nirrá madirrá) - É
uma daquelas frases emblemáticas que identificam, em qualquer sociedade, traços
característicos que remetem a mundos complexos, e no caso dos Kulina à
cosmologia, ao xamanismo, a organização social, as atividades cotidianas, enfim,
falam muito mais do que as simples palavras dizem.
Em acreanês poderia
ser traduzido por: Bora, gente!!! - onde
nija significaria “vamos” e Madija aqueles que “são gente”, a “própria
gente”, e por extensão “todos aqueles que são gente”.
- Bora, gente! - Significa irmos juntos, a
gente, nós que somos gente, que vamos juntos conversar, construir, pescar,
plantar, guerrear, cantar, sofrer, enfim, todo o sentimento de coletividade e
pertencimento associado ao ser Kulina (Madijá). Essa gente musical, forte e
absolutamente etnocêntrica (assim como nós...), já foi um dos mais numerosos
povos de uma região, que vai do sul do Amazonas, passando pelo Acre e
fronteiras com Peru e Bolívia.
Entre minhas
lembranças da visita à aldeia de Santa Júlia no Rio Purus, em novembro de 1996,
a mais intensa é a da sonoridade cotidiana, composta pelos cantos das mulheres
nas casas, que às vezes construíam, umas com as outras, um contraponto melódico
incidental ambiental.
A centralidade da
musicalidade Kulina na vida social já havia sido descrita por outros
pesquisadores que me antecederam como Adams, Pollock, Lorrain, Swetsh; e esse
foi um dos principais motivos da escolha por este grupo para a minha pesquisa
de campo etnomusicológica.
As práticas musicais
Kulina estavam todas relacionadas, naquele momento, a outros domínios do tecido
social, utilizadas nos rituais de cura, para exortar os homens a pescar e
caçar, comunicar intenções amorosas e para transmissão de conhecimentos
ancestrais e da língua, na forma de pequenos contos musicais condensados, de
conhecimento coletivo, diferentes dos cantos altamente ritualizados e
hierárquicos dos xamãs, de tradição oral, passados de mestre para discípulo,
normalmente alguém de sua própria linha relacional e próxima a ele.
Reconhecidos pelos
vizinhos das aldeias como grandes xamãs e poderosos feiticeiros, são percebidos
pelo imaginário local como perigosos, e portanto temidos, além de sujos,
preguiçosos e ladrões. O apogeu desse imaginário dirty and evil foi o episódio do suposto canibalismo Kulina no município
de Envira no Amazonas, nas proximidades da aldeia do Cacau, quando um
adolescente foi encontrado morto e os Kulina foram acusados de terem comido
suas vísceras. Essa visão duvidosa do delegado de polícia, corroborada pelo
médico de plantão e assumida como fato pela população local ganhou contornos de
denúncia mundial, após o que o caso desapareceu do rapidamente do noticiário.
Esse reconhecimento,
que tem aspectos jocosos e envolve parcerias de trabalho e trocas culturais,
como no caso do contato dos Kulina com Katukina (Noke Koi) e Yawanawá, no
passado, na forma de parcerias, também se aplica, de modo inverso, numa atitude
de utilização da alteridade como marcador diferencial, onde se afirma a própria
positividade através da negação do outro. Embora frequentes na literatura,
esses embates culturais e mágicos, manifestos nas acusações de roubo, rapto e
desconfiança encontraram terreno fértil na sociedade entorno, como já vimos,
para cristalizar crenças que dizem mais sobre quem as mantém do que a quem se dirigem.
Não se pode negar, no
entanto, que essa imagem é reforçada pela atitude etnocêntrica e impermeável
dos Kulina que, ao mesmo tempo que os isolava do contato e das influencias
externas (após mais de cem anos de contato e trabalhando para os brancos ccaria, poucos Kulina falam português),
favoreceu o fortalecimento desse eixo centrípeto concêntrico através do qual se
definem os lugares de homens, mulheres, crianças, animais e estranhos, sendo a
partir dele que os círculos de reciprocidade definem o mundo sensível, a
cosmologia e suas múltiplas relações.
Isso mudou. Os
suicídios ocorridos nos últimos dois anos são uma demonstração clara de que
esse tecido está se rasgando; lenta e profundamente. Vários fatores chamam a
atenção nesses eventos - que eu acredito sejam de morte anunciada -, cujas
causas podem variar no varejo e local, mas agrupam-se no atacado do cenário
regional e talvez brasileiro: a profunda sensação de desassistência dos índios
por aqueles que deveriam protegê-los.
O tema do suicídio
indígena não é novidade no Brasil. Entre os Guarani-Kaiowa do Mato Grosso do
Sul, essa é uma triste realidade que atinge, desde a década de 1980,
principalmente os mais jovens (mais de 65 % dos casos de enforcamento é
composto por homens entre 15 e 29), confrontados com a dura realidade dos povos
desassistidos e desprovidos de força política para reagir, adotando estratégias
de sobrevivência que alternam entre o contato intensivo, com forte apropriação
dos meios e usos da sociedade não índia, até o permanente estado de defesa e
construção de cercas e muros virtuais ou não. Isso ocorre por exemplo entre os
Kaingang do Sul do Brasil, que vivem em permanente estado de sítio, alocados em
reservas minúsculas que proporcionam condições de sobrevivência mínima, muitas
vezes sem água potável, riachos ou sem caça, e em áreas de difícil cultivo,
circundados por agricultores em atitude constante de pressão por suas terras e
pela sua saída, de uma forma ou de outra.
Em nosso estado,
apesar dos vários alertas de indigenistas, das associações indígenas e de
setores da sociedade preocupados com os problemas dos índios, essa situação
permanece praticamente encoberta até os dias de hoje, conseguindo apenas um
certo nível de apreensão dos órgãos que tem a responsabilidade de assisti-los,
mas com pouca ou nenhuma condição real de fazê-lo. A grande imprensa e as redes
sociais também são extremamente tímidas ao noticiar ou questionar esses
acontecimentos, dando a impressão de naturalizar, por omissão, essas tristes
realidades.
Diante da situação
dos Kulina o Conselho Indigenista Missionário - CIMI - Regional Amazônia
Ocidental, em Julho de 2016, publicou uma nota pública denunciando esse estado
de abandono e violência entre os Madijá (auto denominação Kulina) e solicitou
ao Ministério Público Federal no Acre que tomasse providências para apuração
desses fatos, o qual por sua vez instaurou um inquérito civil demandando
diligências aos diversos agentes a fim de se informar e se posicionar sobre o
assunto.
Desde então, a Funai,
o Distrito Sanitário Especial Indígena - DSEI - e o próprio Ministério Público,
através do envio de um perito antropológico às áreas e aldeias em questão, têm
procurado estabelecer as causas e seus possíveis desdobramentos futuros, muito
embora seja difícil colocar uma lente higienista e estatística sobre causas tão
heterogêneas, e ainda por cima com tão pouco tempo de estudo. Não tive acesso
aos documentos oficiais dos órgãos envolvidos, a não ser aqueles que já
circulam livremente pelas redes sociais e ao próprio andamento do inquérito no
portal de transparência do Ministério Público, que pouco ou quase nada diz
sobre o caso que, é verdade, precisa ser tratado com o devido cuidado. No
entanto, os relatórios de viagem do CIMI, além de minhas conversas e
entrevistas com vários agentes, psicólogos, nutricionistas e viajantes
ocasionais, ofereceram um panorama bastante obscuro e preocupante sobre as
configurações das mortes, desde as políticas assistenciais equivocadas até a
influência do capeta. Salve Jorge!
Sim: o capeta!
Francamente, eu não sabia que era possível cheirar gasolina, e muito menos
bebê-la. Mas isso acontece em todo mundo, havendo inclusive seriados americanos
(óbvio que é americano), que se dedicam a esses estranhos hábitos no mundo. Ao
que tudo indica, inalar gasolina provoca uma sensação de euforia forte e
viciante (após a superação da queimação de todas as vias aéreas). De efeito
rápido e explosivo também é o consumo do combustível que, além de destruir
mucosas, rins e fígado, provoca sensações extremas de quase possessão. É nesses
contextos que familiares de um dos usuários de combustível pediram a
assistência de um Pastor, para tirar o capeta que falava dentro da cabeça do
usuário. Como o capeta não faz parte dos domínios ontológicos ou xamânicos
Kulina, é necessário que um agente externo, daquele mesmo domínio, proceda ao
combate com a entidade e a expulse ou neutralize.
As doenças de branco
não podem ser curadas pela medicina Kulina, sendo esse um dos entraves nos
tratamentos e políticas de redução de incidentes envolvendo bebidas, gasolina e
gás de cozinha.
Nesse mesmo relato,
que termina com o auto enforcamento do usuário de gasolina, a fala dos parentes
sobre o assunto é perturbadora: "ele morreu sozinho, ele estava sozinho.
Morreu sozinho". Estar sozinho significa estar fora do sistema de
reciprocidades, fora do alcance social da ajuda e do pertencimento. Minha
compreensão é a de que o suicídio explícito - o ato de enforcar-se, na verdade
acontece quando esse jovem ou não tão adulto rompe, não por livre iniciativa,
esse cordão de proteção cultural e se lança no abismo da solidão e do desânimo.
Entre os
bem-intencionados, desenvolvimentistas, religiosos, antropólogos, políticos e
agentes governamentais de todo tipo, sobram explicações e tentativas de
culpabilizar este ou aquele, ou uns aos outros. Projetos de governo baseados na
imagem da floresta intocada por guardiães e xamãs irrepreensíveis tem que
conviver com realidades muito mais duras, recheadas de tensões, avanços e
recuos, da necessidade de se conceder e reconhecer a auto- determinação dos
povos originários e as complexas interações que os povos desenvolvem entre si e
com os brancos, dentre os quais as boas intenções as vezes provocam mais danos
que as más.
Os dados que disponho
falam entre quinze e dezesseis suicídios de Kulina no Acre e Sul do Amazonas
desde 2015. Nessa conta não estão incluídas as tentativas de morte evitadas
pelos parentes, ou aquelas não relatadas por vergonha e medo. Vistos como uma
epidemia ou uma loucura que se espalha do Juruá ao Purus, esses eventos todos têm
alguns denominadores em comum, e entre todos eles existe um elo de ligação mais
genérico, que é a infeliz, porém imperiosa necessidade dos Kulina, e outros
povos, aprenderem a lidar com os capetas do Juruá, Envira e Purús: Nós!
Domingos Bueno é
Etnomusicólogo, Professor Mestre da Universidade Federal do Acre (UFAC) e Doutorando pela
Universidade Federal do Paraná(UFPR).
Comentário retirado do Facebook:
ResponderExcluirMoacir Haverroth: De fato, muito complexa e triste essa situação. A primeira aldeia a que cheguei, quando vim ao Acre para trabalhar na Comissão Pró-Índio do Acre (1997) foi a citada Aldeia Santa Júlia, no Purus. Nesta mesma viagem, em 1998, ficamos por três dias em cada aldeia Kulina da TI Alto Purus, além dos Kaxinawá da mesma TI, uma viagem de dois meses, passando a trabalhar com eles durantes os dois anos em que estive na CPI-AC. No meu retorno ao Acre, em 2005, meu primeiro projeto foi novamente com os Kulina, desta vez no Rio Envira, por onde venho viajando desde 2006. No Envira, foram três anos de trabalho com eles. Povo alegre, receptivo, que, quando te conhece, te acolhe como alguém deles, mas, também, como escreve Domingos Bueno, reservados em relação aos cariú (não indígenas) ou mesmo aos não-kulina. Detalhe importante que se observa, quando entre eles, é a profunda alteração da personalidade ou do comportamento quando em contato com o "capeta" exógeno à sua cultura original, ou seja, o álcool (geralmente o chamado "tampa azul"), diferentemente do que acontece quando se ingere a caiçuma, bebida fermentada a partir da mandioca. São viagens, em geral, muito diferentes, uma agressiva, violenta, a outra alegre e lúdica. Os kulina, facilmente reconhecíveis nas ruas de algumas cidades do interior do Acre, como Sena Madureira, Manoel Urbano e Feijó, vivem no limite constante entre a vida e a morte e, nesses casos apontados na matéria, os Dsopineje ('pajés') pouco podem fazer. Cabem ações urgentes e conjuntas. Eis outro problema real, são pouquíssimas as pessoas/profissionais disponíveis para atuar entre os Kulina.