Fonte G1 |
Por: Jairo Lima
Teve um assunto que andou gerando arengas e quizumbas nas
redes sociais – que a cada dia ficam cada vez mais antissociais – e que serviu
de mote para muitas postagens de protesto e outras tantas puramente retóricas:
apropriação cultural. Isso tudo gerado pelo fato de uma jovem, em tratamento
contra o câncer, ter usado um turbante para disfarçar a falta de cabelos,
primeira baixa em qualquer tratamento mais agressivo para esta triste moléstia
humana.
Creio que faltou discernimento e bom senso em muitas
destas postagens feitas nas ditas redes. Postagens estas que, em grande parte,
confundiram aspectos fundamentais de uma cultura, com aspectos estéticos que
lhes dão forma. Mas sem desmerecer essa discussão do turbante, até porque, em
alguns nichos, este tema é um assunto que faz parte de um debate sério sobre aspectos
fundamentais da identidade cultural de um grupo, faço o link disso com outros
assuntos que sempre me chamaram bastante atenção, mas, claro que nem de longe
mobiliza ou causa cismas como o caso da indumentária citada.
Claro que estou falando da questão indígena. Mais
precisamente da macaqueação que vemos ocorrer comumente em nossa triste
Pindorama. Principalmente nestes dias de festividades carnavalescas que
antecedem a Quaresma. São observações muito pessoais de minha parte e que
possivelmente não encontrarão eco, mas que não poderia deixar de citar,
aproveitando o feriadão festivo (para alguns).
Não se trata de militância ou vigilância do politicamente
correto, nada disso, até porque acho muito equivocada e hipócrita boa parte do
que se prega ou se defende nesta onda policiesca. Mas, no que diz respeito à
questão indígena, não tenho como deixar de observar nestes dias, o que o
advogado, poeta e músico João Veras, em sua tese de doutorado, classificou de
postura “seringalizante”: a visão dominadora e colonizadora transmutada em
atitudes e manifestações degradantes ou inferiorizadas em relação ao
dominado/colonizado.
Fonte: Rede Globo |
Ao longo dos anos e em diferentes festividades, em meio
aos ziriguiduns, bundas, peitos e bebidas, vemos a versão contemporânea da
política do pão e circo, isso sim, verdadeira herança cultural dos
colonizadores, onde o índio é só um adereço ou inspiração para alguma canção ou
enredo estereotipado, onde estes povos reverenciam um deus Tupã, em suas
aldeias vivem lindas índias (como a Pocahontas da Disney) e sempre tem um
guerreiro fodástico como o Hércules ou o Aquiles fazendo coisas fantásticas.
Este “índio” idealizado e estereotipado é uma a criatura
possui sempre um quê de demoníaco ou fantástico, em contato místico com uma
natureza cheia de mistérios, violências e lutas contra seres mitológicos cheios
de poderes sobre os elementos, a natureza e os homens. Nesse enredo, com cara
de drama grego, não existe a questão moral, ou seja, a “moral da história” –
que traga algum ensinamento de vida -, somente uma eterna existência
fantástica, desprovida de razão, inteligência e carisma. Pois, de maneira
geral, este ser (o índio) está no mesmo nível de vileza e animalidade dos seres
que o rodeiam.
Outra coisa que me incomoda muito, e que acho exemplo
máximo da hipocrisia, é ver em algumas cidades, festividades baseadas numa
suposta herança indígena, onde pregam e alardeiam uma fantasia idílica - e
etílica - que atrai turistas e dividendos para a mesma, enquanto os verdadeiros
indígenas que lá habitam são geralmente vítimas de preconceitos e dificuldades,
sem que os citadinos ou o poder municipal busque ajudar ou apoiar políticas
voltadas a eles.
Claro que esta situação não é exclusividade dos povos
indígenas, pois se vê inclusive outras sociedades e culturas singulares sendo,
a cada dia, desmerecidas ou desvirtuadas pelo processo homogeneizante que vem
tomando força nos últimos anos, principalmente através da padronização cultural
imposta pelos meios de comunicação de massa, que inserem certo padrão de como
“fazer as coisas”. Um exemplo? Claro! Respondam-me: porque de Norte a Sul do
Brasil se comemora do mesmo jeito o carnaval? Com desfiles de escolas de samba,
blocos de rua, rei momo e o escambau?
Sempre foi assim? – Pois é. Acredito que a resposta geral para estas
questões certamente já deve estar estalando nas mentes dos leitores, até porque
acredito que os que leem textos como este que escrevo possuem, certamente, um
arcabouço de informações e conhecimentos advindos de outras fontes que não as novelas
das oito ou o Jornal Nacional, certo?
Pensem e observem como, diariamente, todos os meios de
comunicação globalizada tendem para a construção de uma unidade cultural e
social. Isso não é acidental, faz parte de um processo de criação de uma
“identidade nacional”, imposta de maneira a diminuir ou até mesmo negar a
existência plural de culturas e identidades, pregando a homogeneização,
difundindo-se um estereótipo de “ser social e socializado” (integralizado?), de
maneira a negar-lhe a singularidade.
Esse processo é ainda mais invasivo e destrutivo quando
se trata de “integrar” os povos indígenas à sociedade envolvente. Já notaram
que, de maneira geral, aos olhos dessa sociedade colonizadora (seringalizante)
tudo que diz respeito ao indígena nunca é considerado algo sério ou digno de
respeito? Já citei como muito me incomoda não ver o índio contemplado com
espaços e políticas positivas de igualdade racial. Nem no ministério voltado a
este tema temos indígenas em posição de destaque. Isso sem falar da luta
desigual para manter vivas as línguas indígenas.
Nos currículos escolares o espaço para conhecer a cultura
indígena é insignificante, menor até que o espaço dado à cultura africana. Isso
é um absurdo, principalmente por serem estas duas culturas as responsáveis por
boa parte de nossos costumes sociais, gastronômicos, higiênicos e estéticos.
É ridículo vermos como o Dia do Índio é comemorado nas
escolas, quando é comemorado. Até mesmo nos municípios onde existe a presença
indígena, poucas são as escolas que convidam indígenas para discursarem,
pintarem os alunos ou mostrarem sua cultura. Em geral pega-se um estereótipo do
índio e macaqueia-se a criança como tal – creio que não preciso descrever como
é, imagino que todos lembram quando eram crianças ou sabem como é nas escolas
de seus filhos.
E onde tudo isso se cruza com a cizânia do turbante? – Aí
é que está: não se cruza. As questões que envolvem os povos indígenas nem de
longe mobilizam as redes ou a sociedade em geral. Para a maioria, usar um cocar
é um adereço bonitinho, uma coisa estética, muitos fazem fotos e poses usando
um cocar, fazendo carinhas e gestos. Mas usar um turbante é algo mais sério,
pois é parte de uma identidade racial e por isso somente um determinado grupo
pode usá-lo. É preciso equalizar essa visão, expandir seu entendimento e
estabelecer um espaço de reflexão e discussão séria e contínua, de maneira que
o assunto não se perca quando surgir a “nova onda de indignação” com algum
assunto novo.
Não vou entrar na neura de refletir ou tentar levar para
o campo da profundidade filosófica onde está, nesse papo todo, a questão
propriamente dita da “apropriação cultural”. Não, isso certamente será
abordado, com muito mais propriedade, por outros, como a Daiara Tukano, que dia
destes disse-me que estaria escrevendo algo a respeito (clique aqui). Também, sobre este
assunto, indico a leitura do texto “Nossa Cultura Não é Sua Fantasia”,
publicada pela Rádio Yandê (clique aqui).
Meu objetivo é trazer algumas reflexões que considero
relevantes para “pensamentar”, como costuma dizer a querida Dedê Maia. Mas fico
aqui matutando: será que este povo todo da cidade, que se fantasia de indígena
e canta a “marchinha do índio”, se dá conta que está agindo de maneira ofensiva
e preconceituosa para com estes Povos?
Calma! Antes de me julgar de estar sendo policiesco
demais pense e leia a respeito do movimento no Rio de Janeiro, de proibir
marchinhas ou expressões ofensivas às minorias ou à cultura afrobrasileira.
Reflita sobre esta situação e transporte-a para a questão indígena. Se ainda
assim você não for capaz de ver onde está o “bicho da goiaba” lhe indico que
procure conhecer mais a cultura dos Povos Indígenas do Brasil.
Mas, voltemos ao ziriguidum.
Enquanto o país se entorpece nas festividades, em sua
preparação para cumprir a Quaresma (não sabe o porquê de existir o carnaval?)
muitos povos indígenas estão sendo mortos ou desalojados de suas terras
ancestrais. Outros tantos estão morrendo por falta de uma política eficaz de
atendimento de saúde ou passando fome por falta de incentivos que propicie a
segurança alimentar de suas comunidades.
Devo estar sendo um verdadeiro estraga-prazer, eu sei,
mas para mim é difícil contagiar-me com essa alegria fabricada por canais de
TV, enquanto o país está atravessando uma série crise política e econômica e,
nisso, os povos indígenas estão sendo mais ameaçados que em muitos anos. Dê pão
e dê circo ao magote que, certamente, não perceberão o sofrimento ou a penúria
dos menos afortunados.
Como citei no início do texto, é uma reflexão um tanto
pessoal de minha parte. Entendo e apoio totalmente o direito de qualquer pessoa
se divertir da maneira que bem entende, isso é saudável para a democracia e a
liberdade, conceitos que prezo muito. Também explico, caso não tenha ficado
claro, que não estou me referindo às manifestações culturais tradicionais como,
por exemplo, a congada, o samba de roda, o maracatu, a marujada, etc.
Expressões estas que fortalecem a identidade e singularidade dos grupos sociais
que as praticam. Tô falando é da cultura de massa mesmo, estereotipada e embrutecedora
que a cada dia ganha mais força.
Pra finalizar, não posso deixar de registrar um
diferencial neste ano, onde corajosamente uma das engrenagens desta máquina de
massificação resolveu “ir contra o sistema”. Claro que estou me referindo ao
samba enredo “Xingu, o clamor que vem da floresta” da Imperatriz Leopoldinense
(clique aqui e aqui). Onde a questão indígena finalmente está sendo abordada
por outro prisma. Só o fato de ter pisado nos calos de políticos ruralistas já
me deixou bastante feliz. Claro que teremos ziriguiduns, bundas, peitos e
outros artefatos espalhafatosos que fazem parte do desfile, mas a clareza do
tema abordado compensa tudo isso. Fiquei pensando se por acaso, a transmissão
nacional deste desfile não iria passar por “problemas técnicos” misteriosos
quando a Escola de Samba iniciasse a evolução deste tema no sambódromo
(ultimamente não ando duvidando de muita coisa).
Esta iniciativa mostra como é possível atentar para uma
questão social, política, cultural ou ambiental sem perder o brilho ou alienar
totalmente o assunto.
Vale lembrar que, em 2011, tivemos um desfile financiado
pelos “coronéis”, babando e exortando o agronegócio, com direito à presença da
“Bruxa do Centro-Oeste” em destaque num dos carros alegóricos, mas, fazer o que
né? Faz parte, afinal, a beleza de hoje só é notada quando a comparamos com a
feiura de outrora, certo?
Boa semana a tod@s!
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