"Cabeça encolhida", artefato munduruku |
Por: Raial Orotu Puri
A última quinta-feira, 16 de
fevereiro de 2017 foi a data em que se previu o primeiro fim do mundo deste
ano, muito provavelmente não o último, visto a recorrência com que esses
eventos são informados através da mídia. Aliás, são tantos os eventos que eles
são recebidos inclusive de forma um tanto quanto jocosa, e já sem a pomba,
circunstância e apreensão das ocorrências mais célebres, como a passagem de
1999 para 2000 prevista por Nostradamus; ou às 2h14min do dia 29 de agosto de
1997, quando a Skynet se tornaria
autoconsciente e desencadearia o apocalipse nuclear; ou ainda o dia 12 de
dezembro de 2012 do calendário Maia. Bom, aparentemente as previsões até hoje
estavam erradas e o mundo não acabou. Ou talvez sim. Quem garante, não é mesmo?
Há que se considerar a
possibilidade de um sim. De um mundo já findo, há muito tempo. E de estarmos em
uma espécie de limbo, tártaro, ou qualquer outra coisa, seja lá o que for que
constitua essa pretensa realidade no qual estamos mergulhados, sabe-se lá há
quanto tempo. Aliás, ‘realidade’ talvez seja um adjetivo forte demais para
conceituar isto que vivemos, dado os inúmeros contextos onde o inacreditável
parece brincar com os limites entre o que é possível, aceitável e razoável de
se aceitar sem necessariamente afrontar o tênue equilíbrio das coisas.
Equilíbrio: eis aí o tema
que reaparece neste texto, a grande questão que sopesa e ameaça a existência. É
importante que quando se pensa em profecias de fim de mundo, não se deve sempre
deixar levar pelo enredo apocalíptico de grandes eventos que se estendam a
‘todo o mundo conhecido’. A simples ideia de que exista um único mundo deveria
ser colocada em questão, sobretudo em um país que se constitui sobre o
esqueleto de uma diversidade de povos e nações, cada qual com uma cosmologia
própria, e seus próprios conceitos acerca daquilo que é constitutivo ou
destruidor para a continuidade da existência de seu mundo. No Brasil de hoje,
existem mais de 200 povos indígenas, cada qual com uma concepção própria sobre
a existência e o fim dela. É possível dizer isto, mesmo ciente de que existe
uma grande quantidade de coincidências entre essas concepções e cosmologias. E
isto, falando do hoje, de quando já vivemos uma realidade que é resultado do
maior genocídio da história conhecida, com seus cinco séculos ininterruptos, e
que causaram a redução drástica da diversidade étnica aqui presente
anteriormente ao contato.
Eduardo Viveiros de Castro,
aliás, já falou em uma entrevista à Eliane Brum, concedida no ano de 2014 que
os indígenas se tornaram especialistas em fim do mundo, visto que o nosso mundo
chegou ao fim no distante ano de 1500, quando aqui aportou a destruição
gritando teatralmente ‘Terra à vista!’.
Não que anteriormente à
invasão branca às terras do que hoje chamamos Américas, e Brasil não houvesse
choques e embates e conflitos. Havia. Havia guerras, disputas por espaço,
território e visões de mundo não coincidentes. Mas ocorre que, a novidade
trazida 12 de outubro de 1492 foi a imposição de um mundo que pretendia anular
a viabilidade de todos os outros. Todas as sociedades possuem uma visão
etnocêntrica das coisas, e nesta visão, aquilo que pertence ao grupo, o que é o
‘eu’ e o ‘nosso’ é, necessariamente melhor do que a alteridade, o ‘outro’, o
‘deles’. O problema está no fato de que a percepção da ‘sociedade branca,
cristã, ocidental’ vai muito mais além de simplesmente divergir. Ela precisa
englobar e uniformizar o mundo, dentro de uma perspectiva que não permite
contestação ou contemporização. As coisas no mundo do raion (não-índio) são boas ou más, certas ou erradas, santas ou
demoníacas. Essa dualidade é esmagadora da multiplicidade de possibilidades que
constitui a existência indígena, e, ao longo dos séculos de invasão, vem
resultando na destruição da riqueza desses universos, e ameaçando a
continuidade da Vida dos povos que ainda resistem na atualidade.
Munduruku - Autor: Hércules Florence |
Porque aí está um dos
detalhes do que significa ser indígena, e se constituir em um ser que precisa
conciliar uma existência que se dá em meio ao caos que ameaça constantemente o
existir: as vezes se dá a condição de permanecer respirando, andando,
caminhando, ainda que essa existência seja objeto constante de negação. É assim
que vivemos eu e os demais Puri na atualidade, insistindo em dizer que insistem
em dizer Ghaima tamathin! (nós estamos
vivos), enquanto desde o Século XIX somos considerados extintos, pela força de
uma política de apagamento de nossas vidas e existência, com o objetivo
específico de tomar posse das terras que ancestralmente nos pertenciam.
É assim que precisam prosseguir
os Muduruku, desde que o Paribixexe
(em português, conhecido como Sete Quedas), seu local sagrado, um trecho
encachoeirado do rio Teles Pires foi dinamitado, após o consórcio responsável
pela construção da usina hidrelétrica de Teles Pires obteve no ano de 2013 a
autorização judicial para iniciar a obra e acabou com as corredeiras. Ao explodir as pedras e abrir o leito do rio,
o empreendimento destruiu também o que o equivalente ao “céu” ou “paraíso”, o
que significa dizer que esse empreendimento ameaça não apenas a continuidade do
mundo Munduruku em termos de sua existência terrena, mas que também destruiu o
devir desse povo, uma vez que o local para onde a ‘alma’ de seus mortos estava
destinada a ir foi destruída em prol de um projeto desenvolvimentista, que,
obviamente, não é pensado em benefício dos povos originários.
É o que pode-se extrair das
palavras dos Munduruku sobre a destruição que lhes foi imputada, e sobre as
consequências dela para suas vidas (falas extraídas da reportagem do The Intercept
Brasil*:
“Nós tínhamos esse lugar sagrado, nossa aldeia espiritual, onde vivem nossos antepassados. Pensar que não existe mais o lugar sagrado para onde vão os munduruku depois de morrer me dá tristeza. (...) Agora os Munduruku correm o risco de acabar, de morrer no espírito também. É um tempo de morte. Os Munduruku vão começar a morrer. Vão começar a se acidentar e até acidente simples vai matar o Munduruku. Vai cair raio e matar o índio. O índio vai tá trabalhando na roça e um pau vai cair em cima do índio e não é à toa que o pau vai cair em cima dele. Ponta de pau afiado vai furar o índio que estiver caçando. E é impacto porque o governo mexeu no lugar sagrado”. (Krixi Biwün Munduruku, matriarca da aldeia Teles Pires)
“Quando eles dinamitaram a cachoeira, dinamitaram a Mãe dos Peixes e a Mãe dos Animais que caçamos. Portanto, esses peixes e animais morrerão. Tudo aquilo que faz parte de nossas vidas morrerá. É o fim dos Munduruku. (...) E não é o branco que vai pagar por isso. Somos nós os Munduruku vivos. Pode vir em forma de acidente, em forma de doença ou de morte. Ficou acordado que os guerreiros vivos tinham que proteger sempre aquele lugar. Então mesmo os brancos destruindo, quem vai responder somos nós. A explosão com dinamite no lcal sagrado é o fim da religião, é o fim da cultura, é o fim do povo Munduruku.” (Eurico Krixi Munduruku, Cacique e autoridade espiritual de Teles Pires).
Autor: Joceana Biscegli |
Esta questão, que é bem mais
que uma mera questão, é o que esmaga e constantemente ameaça a vida dos povos
originários que ainda resistem a um sem número de constantes ataques. Como se
faz possível explicar para um branco acerca do conceito daquilo que é sagrado e
imutável, quando dentro da concepção deles não existe nada que não possa ser
movido, alterado e destruído, desde que se pague bem por isso? Como fazer um
branco entender que ao dinamitar aquele solo, e mover doze urnas mortuárias bem
como os artefatos que estavam junto delas, eles destruíram um sagrado
equilíbrio que vinha sendo mantido há séculos? Como fazer entender que o fato
de ‘salvar’ essas peças e leva-las a um museu não significa de forma alguma uma
solução para a ameaça que paira sobre a vida de mais de quinze mil pessoas da
nação Munduruku?
E talvez seja esse também o
problema... as consequências funestas desse ato insano ameaçam diretamente não
o maldito consórcio branco que fez toda essa profanação, mas aquele povo que por
cinco séculos vem lutando bravamente pelo seu mundo, e que, depois de tanto
lutar e resistir, se vê agora num nível para além de qualquer esperança.
Acredito que isto também se
assente na questão da incomunicabilidade, ou dificuldade de comunicação existente
entre mundos que, por força das circunstâncias, são obrigados a conviver, ou o
que quer que possa adjetivar as constantes ameaças, violências e preconceitos
que perpassam as situações em que o mundo não indígena avança sobre os mundos
indígenas, e, sem-cerimônia adentra, pisa e destrói seus valores, espaços
sagrados, céus, paraísos, e caminhos.
É inegável a dificuldade em
se estabelecer um diálogo entre mundos cujos valores não são coincidentes,
ainda mais quando não existe comprovadamente um interesse real em comunicação.
No Brasil da atualidade, sobejam situações em que se torna visível esse
desinteresse em diálogo efetivos, e, no caso dos inumeráveis casos de embates
entre projetos desenvolvimentistas e as populações indígenas, também são muitas
e recorrentes as situações em que a desigualdade de forças em conflito, a
incapacidade de reflexão e compreensão por parte dos não-indígenas, e uma
concepção de mundo que acredita que o argumento econômico – de que tudo tem um preço – é capaz de resolver todas
as coisas.
Fonte: Site Overmundo |
Salvo raras exceções, sempre
que questões como a eminente destruição do Paribixexe, e de tantos outros
Paribixexe, são suscitadas na mídia, é bastante comum que o assunto seja
encarado com sentimentos que giram, em sua maioria, entre a indiferença apática
e o desprezo absoluto. Sensibilidade e empatia são mercadorias escassas e muito
raras quando o que está em foco é a segurança de certos valores, como o lugar
de descanso das almas de um povo indígena em particular. Um lugar de descanso
que não é necessariamente o mesmo da alma dos cristãos, e, aliás, a própria
ousadia de não aceitar esse céu cristão já é visto como o principal argumento
para que estes valores sejam irremediavelmente aniquilados.
O problema está no fato
simples de que a esperança e o céu cristão não são soluções possíveis para
curar uma angústia que não é feita da mesma matéria que compõe a mitologia
cristã. Essa angústia não é nascida de um pecado original gerado no Éden, e não
é resgatada pelo sacrifício de um Primogênito, tampouco chegará ao fim no
retorno desta divindade coroada de honra e glória. E talvez não haja anotações
sobre o pecado que foi a destruição do Paribixexe no livro que narre as
histórias dos Guerreiros Munduruku. Se houver... não posso deixar de considerar
que, se houvesse, o mínimo que se poderia esperar em termos de justiça, é que
esse pecado fosse imputado aos reais culpados.
Ocorre que apresentar estas
considerações é de um absurdo que, eu espero, não passe despercebida aos olhos
daqueles que leem este texto: não existe possibilidade de conciliação do mundo
raion com os mundos indígenas, porque os raion
nunca pretenderam tal coisa, e quaisquer considerações em contrário devem ser
de saída descartadas. A verdade é que a expectativa dos brancos sempre foi a de
que nós indígenas desaparecêssemos, ou pela morte, ou pela assimilação.
Toda a riqueza, beleza,
força e diversidade de nossos mundos próprios deveria desaparecer ou, quando
muito, sobreviver em livros e museus. No máximo, vez ou outra, reaparecer na
forma de uma ‘homenagem’, ‘resgate’, ou seja lá o que for, que, de preferência,
apareça esvaziado de todo o seu significado. Mas houve algo que aparentemente
frustrou esse projeto tão bem traçado. Esse algo se chama Resistência. Essa
chama que insiste em permanecer ativa, que teima em não se domesticar, em não
virar gravura, referência, ou mera alegoria. Essa contradição ambulante que se
faz presente na vida aqueles que têm sangue indígena correndo nas veias, esse
mesmo sangue que vem também sendo vertido sobre a terra há tantos e tantos
séculos... A contradição de sobreviver até mesmo à destruição de seu próprio
mundo, mesmo que isto seja um não-lugar, uma existência para além de toda a
esperança, algo que sequer encontra classificação no campo do que é possível.
Autor: Benky Ashaninka |
Tudo o que resulta, ou
resultará daí não sabemos... Mas talvez possamos adivinhar algumas de suas
nuanças mais terríveis, como por exemplo, a dolorosa questão dos suicídios que
estão ocorrendo entre os Madijá. Uma das explicações que se têm tentado dar a
estes fatos tão terríveis é, justamente, conectada à destruição de um
equilíbrio delicado, que tem a ver, outra vez, com os efeitos da invasão de
valores estranhos, e ameaçadores em um mundo particular. Não tenho condições de
avaliar se é essa realmente a explicação, tampouco, se é a única. No entanto,
posso me permitir dizer que é uma hipótese bastante válida, a considerar o
contexto, as recorrências e semelhanças com tantas outras situações que já
temos visto.
Se posso, de alguma maneira,
efetivamente terminar este texto desesperançado com algum nível de esperança. É
de dizer que, apesar de toda a destruição que esses cinco séculos nos vem sendo
impostas, temos resistido, e vimos carregando e sustentando a sobrevivência de
nosso mundo, mesmo quebrados, partidos, e sangrando, seguimos lutando.
*https://theintercept.com/2017/01/16/hidreletricas-avancam-sobre-terras-e-vidas-munduruku, - publicada em 16 de janeiro de 2017:
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