Desenho de Alice Haibara |
Calor!
Iniciamos o mês de agosto, iluminados pelo astro rei que,
além de sua luz, este ano secou nossos mananciais mais cedo, ressecando nossas
matas e aumentando os focos de incêndio florestal. Mas o céu ainda não está
cinza, nem a lua está vermelha, cor fantasmagórica que nos informa quando estamos
no pico do verão causticante da Amazônia, sufocada pela fumaça.
A semana que passou foi agitada. No mundo indígena houve
a realização de vários festivais de cultura em diferentes terras indígenas do
Juruá. Também vi anúncios nas redes sociais, da realização das chamadas
“vivências”, mais nova prática de etnoturismo que está começando a tomar força
e se espalhar por muitas comunidades.
Para mim, outro "agito" da semana foi uma reunião em que me deparei com uma questão inusitada: uma
autoridade inquiriu-me se eu tinha conhecimento sobre os “brancos” estarem
comprando rapé dos indígenas e misturando com cocaína, a fim de vender nas
cidades e assim prender seus usuários no costume e, por conseguinte, aumentar
as vendas. Fiquei sabendo que há um verdadeiro temor, principalmente em
Cruzeiro do Sul e Tarauacá de que o rapé esteja “batizado” com esta substância.
Esta lenda urbana se espalhou por muitas cidades do Juruá.
Confesso que fiquei com vontade de rir da pergunta, mas,
como não se tratava de uma conversa informal, e sim de uma reunião formal,
controlei esta vontade.
Tentei, em linhas gerais, explicar ao inquiridor sobre
este produto, que faz parte das chamadas “medicinas” dos povos indígenas, não
só de nossa região como, também, de várias partes da América. Expliquei, ainda,
os diferentes “tipos” de rapé que hoje são vendidos por quase todos os povos
indígenas de nossa região e por algumas comunidades da floresta, como os
extrativistas.
Argumentei, ainda, sobre a impossibilidade de ser feito
este tal batismo, haja vista a reação física que o uso do rapé causa. Dado por
satisfeito com minhas explicações, o assunto foi direcionado para outras
questões.
Dias depois, entendi qual a motivação da preocupação com
o chamado “rapé batizado”. Disseminou-se que os jovens estavam usando o produto
misturado com folha de coca moída. Realmente não duvido que alguém, ao fazer o
rapé tenha tido tal ideia, mas, achar que cheirar, beber, tomar banho ou
qualquer outro meio de consumo da folha de coca seja a mesma coisa que usar
cocaína, aí já é demais, certo? Fiquei com uma vontade danada de entrar em
contato com a pessoa que havia me perguntado sobre a possibilidade dessa nova
modalidade de tráfico, mas desisti, preferi deixá-lo sem esta informação.
Confesso que não sou adepto do uso dessa medicina, cuja
designação francesa* diz muito pouco sobre sua verdadeira característica para
os povos indígenas, e que, aliado com outras importantes homeopatias como a
sananga, o kambô, o Uni e o ananate, compõem a farmácia de possibilidades de
equilíbrio, tratamento e cura do espírito e do corpo.
Minha indisposição para com seu uso em minha pessoa tem
mais a ver com questões físicas. Sempre tive problemas com qualquer coisa que
precise ser introduzida ou ingerida via nasal, de maneira que nem soro eu uso
para me livrar de minha eterna sinusite. No entanto, em caso de festividades
nas aldeias, não recuso, quando sou conduzido por mãos leves à presença do tipi que, diga-se de passagem, está
sendo feito cada vez maior.
O uso social do rapé há muito extrapolou as fronteiras
das aldeias e os centros esotéricos, vindo a tornar-se cada vez mais o produto
de uso social no meio urbano, devido às restrições quanto ao uso do cigarro. E
vem se tornando moda principalmente entre os jovens.
São muitos os relatos, inclusive em jornais locais, sobre
estudantes que levam seu potinho de rapé e seu curipe para a escola. Tornando-se foco de discussões e preocupações
entre os gestores, alguns destes já procuraram informações junto à FUNAI para
que obtivessem mais esclarecimentos.
Estes gestores batem na tecla, e com certa razão que,
pela lei brasileira a venda e consumo de tabaco são vetados a menores de idade.
E, sendo este produto oriundo do tabaco, o mesmo deve ser restrito ao uso de
adultos.
Comunidades esotéricas, como as que utilizam o chá
sagrado e demais pessoas que
procuram trilhar caminhos mais naturais e
alternativos, também estão no rol de usuários.
Tipi |
Também entre os indígenas seu uso cresceu bastante nos
últimos anos, tornando-se comum vermos nas aldeias os que andam sempre com um curipe* preso ao pescoço ou um tipi* sobressaindo-se de dentro de suas
bolsas.
É indiscutível sua importância terapêutica, social e
cultural para os povos indígenas, assim como não se põe em dúvida seu lugar de
destaque para os usuários não indígenas que apreciam seu uso.
O problema, a meu ver, é quando essa utilização torna-se
um vício ou seu preparo passa a extrapolar o tradicional e entra na perigosa
seara do experimentalismo.
Curipe |
Não se trata de defender falsamente que este só deveria
ser usado em rituais ou seguindo as dietas e preparações espirituais dos povos
indígenas. Eu não seria tão ignorante para achar isso. O foco de minha
observação é outro.
O rapé, além de medicina, representa uma verdadeira
ciência dos povos indígenas, tendo toda uma mística em seu feitio e aplicação.
E até quando é utilizado de maneira mais social, não se desliga de sua natureza
mística. Até porque os indígenas quando o usam, atentam para algumas “regras”
básicas que instintivamente seguem. É algo que está presente no momento em que
pegam seu curipe ou o tipi.
Nesta ciência, as técnicas de uso vão desde o sopro até
os pensamentos e energias que devem ser utilizadas no uso. Ou seja, não se
trata só de “soprar com mais ou menos força”, e as consequências deste uso
podem ser benéficas, quando bem utilizadas, ou altamente negativas para o yuxin do indivíduo, quando não se segue
os ritos específicos.
Mas, sabe como nós, nawa, somos né? Como já citei em
textos anteriores, a opinião de alguns velhos e sábios txais, é impressionante,
como a coisa banaliza-se ou torna-se totalmente superficial quando passa a ser
praticado pela nossa sociedade. Ou seja, quando se torna a moda new age do
momento.
Uma coisa que me chama muito a atenção em nossa sociedade
é a eterna carência em se ter “mestres” disso ou daquilo, sempre precisando de
um guia ou guru que nos ilumine e mostre os caminhos a seguir. Já vi algumas
figuras que andaram pelas aldeias daqui e que, tempos depois, passaram a ter
seguidores e a serem chamados de “padrinho” ou mestre. Acreditem.
E o que isso tem a ver com o rapé? Bem, creio que tem
muito a ver.
Observo que estes ditos “mestres” sempre alardeiam o
mesmo roteiro de vida: receberam o conhecimento milenar das mãos de algum
grande xamã (ou pajé ou mestre) que revelou os segredos de seu povo e que o
entregou.
A partir daí tornam-se especialistas em uso, tratamento e
cura com determinada medicina tradicional indígena. Claro que, por um preço,
muitas vezes bem salgado.
Se alguém tem dúvida do que estou querendo mostrar, basta
fazer uma busca na internet usando a palavra “rapé”. Tenho certeza que irá
encontrar um bocado de “mestre” oferecendo seus produtos, feitos a partir dos
conhecimentos aprendidos junto aos “mestres guardiões indígenas” ou, ainda,
promovendo eventos onde, entre os rituais, o rapé também tem destaque.
Não quero também dizer que só indígena é quem sabe fazer
e aplicar um rapé, ou que
rituais com rapé só são verdadeiros se for um
indígena a praticá-los. Nada disso. Só que, infelizmente, nos dias atuais, os
conhecimentos e rituais tradicionais vêm se tornando cada vez mais “produtos de
mercado” com um bocado de gente se dizendo “mestre”. Assim, fica mais difícil
atestar a veracidade ou qualidade dos mesmos, de maneira que, em caso de
dúvidas, “fique com o original”, ou seja, confie mais na fonte do que no
atravessador ou “discípulo” que se tornou mestre.
Imagem: DreamKeepers |
Na verdade, esse papo de “guardião” disso ou daquilo,
“segredos milenares” guardados e “mestre do conhecimento tal”, nem faz parte da
lógica espiritual dos povos indígenas. Essas palavras só são inteligíveis para
nossa sociedade, fantasiosa e carente de heróis e de guardiões.
O rapé indígena, como qualquer outro produto, deve ser
usado com bom senso, equilíbrio e parcimônia, afinal, mesmo quando usado
socialmente, este não se desvincula totalmente de sua finalidade. Também é
importante lembrar que a matéria prima de sua fabricação é o tabaco e, como
tal, pode sim viciar e trazer problemas de saúde quando usado em demasia ou de
maneira errada.
Outra coisa que é preciso citar é sobre o que chamei, em
um dos parágrafos anteriores, de “experimentação”. Quero me referir ao seu processo
de fabricação, onde alguns fogem da chamada “receita tradicional” e experimentam
diferentes misturas, a fim de se chegar a um produto com características
singulares dos demais disponíveis no mercado. Mas nenhuma destas misturas teria o potencial de prejudicar uma pessoa, desde que seja usado de forma equilibrada.
Os povos indígenas fazem diferentes tipos de rapé, com
finalidades específicas. No entanto, com citei acima, já vi alguns casos bem
esquisitos de misturas como o uso do kambô na receita. Claro que existem as
receitas tradicionais de feitura, com seus ingredientes definidos e conhecidos
ao longo de gerações, mas também, não causa estranheza haver variações destas
receitas. O cuidado está somente em atentar para possíveis “restrições” de seu
uso, caso o mesmo seja muito forte ou tenha mistura que não seja para uso de
todas as pessoas.
Quando ganho um pouco de rapé, sempre pergunto que tipo
é, qual a sua finalidade de uso (se é medicinal, se é para uso diário, etc) e
possível restrição que este possa ter, tipo: ei txai! Este é muito forte? Pois tenho problemas de pressão baixa e
não posso usar rapé muito forte, pois passo mal.
A venda deste produto ao mesmo tempo em que vem
crescendo, também vem gerando, além de certa riqueza para alguns poucos,
bastante discussão em algumas comunidades que começam a se sentir incomodadas
vendo seu nome sendo utilizado para dar mais status e legitimidade ao produto.
Explico: às vezes, um membro da comunidade produz e começa a vender muito rapé,
não só em sua cidade como, também, fora do estado. Na identificação do produto
o indígena não usa o seu nome, usa só o nome do povo, de maneira que aquele
produto dele passa a ser conhecido como um produto de seu povo, mas o lucro pela
venda não é distribuído ou compartilhado, no entanto, o ônus que pode advir
recai sobre toda a comunidade.
Uma estratégia começou a ser refletida por algumas
comunidades que já procuram meios de “patentear” certos produtos tradicionais,
como o rapé. Inclusive algumas já estão avançadas no estudo jurídico com este
fim.
Tenho discutido com algumas lideranças a ideia de, em vez
de patente, constituir um “selo indígena de procedência e qualidade” para seus
produtos, como o rapé. De maneira que não só haja o reconhecimento da
procedência do produto como, também, a proteção do conhecimento tradicional
daquele povo.
Aqui, na terra de Galvez, este crescimento na procura e
na venda vem gerando certos constrangimentos quando, por vezes, há a apreensão
do produto quando este é levado por indígenas para outras localidades ou outros
estados.
Se por um lado o indígena justifica ser este um produto
de uso tradicional e, por isso, tem o direito de levar consigo para onde for,
por outro, as autoridades responsáveis pelo controle de circulação em
aeroportos justificam que as quantidades que são embarcadas estão muito acima
de um consumo particular e, por isso, quando localizadas, podem e devem ser
apreendidas.
Essa situação vem se agravando e as comunidades estão
estudando e desenvolvendo práticas de venda e envio dentro das
regulamentações hoje existentes, dando mais garantia e segurança tanto para o
indígena que vende, quanto para a pessoa que mora noutro estado e que tem o
interesse em adquiri-lo.
A prática comum por aqui é que, quando o indígena viaja
para divulgar sua cultura, realizando alguns rituais tradicionais, costuma levar
consigo sempre uma quantidade deste produto e de outras medicinas, para que
possa vender e divulgar entre os interessados.
O rapé indígena do Acre vem ganhando muitos apreciadores
pelo Brasil, que o consideram especial, forte e de efeito muito mais duradouro
que o comumente vendido em tabacarias ou disponíveis em demais casas onde se
vende este produto.
É válido deixar claro que nem todos os povos indígenas do
Acre o utilizam socialmente, mantendo seu uso restrito às práticas espirituais
tradicionais, ligado diretamente a seus rituais de cura sob responsabilidade do
pajé.
Minha reação após uma aplicação de rapé pelo pajé Rekan Satanawa |
Este aumento na procura pelo rapé indígena deve ser visto
além de seu uso espiritual. É obvio que a qualidade e os efeitos do produto
fazem com que haja este fenômeno de venda e seus usuários não se importam ou
não se atentam para a questão espiritual ou os fins específicos a que este
produto se destina. Querem usá-lo e pronto.
Por outro lado, seu uso ritualístico também vem ganhando
espaço junto às irmandades e demais centros espirituais e esotéricos pelo
Brasil e fora deste. Aí a questão é outra. Em minha opinião, para usá-lo tem
sim que ser conhecedor de sua ciência, pelo menos no que diz respeito a suas
regras básicas. Afinal, como qualquer medicina que vise o equilíbrio espiritual
há de se ter muito cuidado ao manejá-la.
Também, para estar em sintonia com a mística indígena,
não é obrigatório utilizar todas as medicinas tradicionais. Por exemplo,
conheço um grande pajé curador que não usa rapé, mesmo sendo este muito usado e
apreciado em sua comunidade. Eu, particularmente, prefiro um bom nixi pae (ritual da Ayuaska), sem ser
necessário incrementar sua força e ensinamentos com o rapé, preferindo usar meu
velho e companheiro cachimbo, com um bom dumê
(tabaco).
Diferente do Dalai Lama, que morre e reencarna sabendo
quem foi no passado, nenhum indígena nasce pajé ou especialista neste ou
naquele conhecimento, estando sempre em processo de estudo de sua tradição. Por
isso, quem tem interesse em conhecer, é preciso “pegar leve” quando quiser
experimentar uma aplicação ritualística desta medicina mesmo sendo um índio a
aplicar e, principalmente se este for muito jovem. É o conselho que sempre dou
quando acompanho alguém a uma aldeia e esta pessoa deseja experimentá-lo.
O aumento de seu uso nas aldeias também não é nenhum
fenômeno que traga preocupações para a manutenção da cultura, ao contrário, incorpora-se
em sua dinâmica.
Também, não se justifica criminalizar ou reprimir os
indígenas por venderem aos interessados nos meios urbanos, pois, não cabe a
estes fazer campanhas de informação sobre o uso de produtos oriundos do tabaco,
assim como este, quando usado as receitas tradicionais para uso social, não
possui restrições físicas que venha impossibilitar seu uso.
O excesso de uso no meio urbano, além de desaconselhável,
cria situações desagradáveis, pois, assim como a fumaça venenosa do cigarro incomoda,
e por isso não se pode usar em locais públicos fechados, os mucos e outros
fluidos corporais expelidos quando se usa o rapé não são nada agradáveis de
observar quando se está conversando com alguém, principalmente em uma sala
fechada.
Eu, aprendendo as técnicas de assopro com os Noke Koi |
Os excessos nunca são bons, assim como nos ensina Aristóteles:
O excesso e a deficiência são uma marca
do vício e a observância da mediania uma marca da virtude.
E assim começamos mais uma semana, com a natureza arengando conosco e nos mostrando que é preciso mudar, plantar mais árvores, cuidar mais de nossos rios e mananciais. Viver em equilíbrio não só consigo mas, também, com o meio que nos cerca.
É preciso espalhar mensagens de conscientização, mas, também, é preciso por em ação aquilo que espalha, afinal, nenhuma transformação é feita só de cliques no "curtir".
Precisamos de mais natureza e menos arengas políticas.
Boa semana a tod@s,
Jairo Lima
* Curipe
– aplicador individual de rapé.
* Tipi –
aplicador de rapé mais longo, para ser usado por outra pessoa
* Rapé é
uma palavra francesa, que significa “ralar”, “raspar”. Para os povos indígenas é conhecido como: rume, putu,ruru, etc
THIS IS VITAL INFORMATION FOR INDIGENOUS PEOPLES
ResponderExcluirComeçamos mais uma semana, com seus textos maravilhosos!
ResponderExcluirComo sempre você abordou um tema importante e reflexivo, é lamentável que algumas pessoas usem essa medicina de forma equivocada, mas é como você citou precisamos espalhar mensagem de conscientização. Boa semana para nós .
Realmente, Hursilene, cada semana tem sua novidade e, para mim, a alegria de ter meus textos reconhecidos por pessoas como você ma faz ter certeza que a semana será muito boa. O rapé, como qualquer medicina, precisa ter seu uso equilibrado e feito com prudência, o que, infelizmente, não ocorre.
ExcluirParabéns pelo texto, muito bom. Conheci o rapé aos meus 13 anos, um amigo levou uma latinha para escola e desde então faço o uso diario. No inicio era uma diversão de menino, usava na sala de aula, pra abaixar a pressão e ficar 'leve' por um tempo. Depois veio o vicío. Hoje, alterno o uso entre tabaco pra fumar, e rapé, com o mesmo objetivo, saciar a necessidade de nicotina no sangue. Descobri a pouco tempo sua origem, e os fins medicinais e espirituais, nunca experimentei o rapé indígena, mas acredito que seja diferente do que é vendido nas mercearias antigas e tabacarias da cidade.
ResponderExcluirGrato.
ResponderExcluirO rapé indígena é fácil de se conseguir, você pode fazer uma busca na internet e comprar, para entrega em sua residência. Só procure usar com equilibrio, pois é muito mais forte.
Fundamental se tornou a leitura de suas crônicas para mim,traz-me conhecimentos ancestrais e uma profunda sensação de beleza e paz.
ResponderExcluirFico feliz, Francisca, se minhas reflexões escritas lhe trazem bons conhecimentos e boas energias. Seguimos.
ResponderExcluirPrezada Sonia,
ResponderExcluirPodemos sim conversar a respeito. Te indico que me busque no:
https://www.facebook.com/jairo.lima.3133
Excelente texto, Jairo... Zpsrabéns, meu Txai.
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