segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

LÍNGUA INDÍGENA: Mais que um significado de mundo...

Tuwe Huni Kui - Foto: Acervo Tuwe
Por: Jairo Lima

Encerrou-se na semana passada o “Curso de Hãtxa Kuin”, protagonizado pelo Prof. Dr. Joaquim Maná Kaxinawá e realizado na aldeia Água Viva, Terra Indígena Praia do Carapanã.

Sempre faço uma troça inocente sobre esta terra, informando aos interessados em conhecê-la ou que se encontram em trânsito para a mesma que, a despeito do maravilhoso Povo que lá habita, e pela beleza exuberante da natureza que a circunda, Deus decidiu que este seria o lugar onde morariam os mais nervosos e insaciáveis piuns e carapanãs da Amazônia.

Este curso foi especial, e arrisco dizer que foi um marco no processo de fortalecimento do hãtxa kui (língua tradicional do Povo Huni Kui), pois desta vez, vemos a iniciativa e sua execução totalmente sob a égide dos detentores desta língua. Dispenso aqui umas linhas para dizer que a afirmação acima não procura visões simplistas ou panegíricas superficiais só porque a atividade foi realizada por professores indígenas. Nada disso. Temos um doutor em linguística a frente do processo, ou melhor, temos um doutor Huni Kui que além de falante (e pensante) do hãtxa kui também possui todas as ferramentas necessárias para o ambicioso projeto que o move: fortalecimento e expansão da língua materna.

O mais recente texto da Raial, “Resposta a Samman Potéh”, além de ser de uma profundidade singular, em seus parágrafos finais lembraram-me pensamentos que há muito circulam em minha mente e que me atiçaram a estudos e observações ao longo destes muitos anos, de subidas e descidas de barrancos. Trata-se da língua indígena.


Sempre apreciei ouvir e entender as nuances das línguas. Por exemplo, sempre achei a “língua das luzes” a mais bela das línguas ocidentais, rivalizando em beleza e harmonia com a língua romântica francófona.
Crianças Huni Kui - Foto: Hadrien La Vapeur

Quando me deparei com a língua indígena, desde o começo, passei a sentir uma curiosidade enorme sobre esta. Interesse que só fez aumentar quanto mais submergia nos mistérios cósmicos do huni (ou Kamarãpi, ou Uni etc). Não se tratava de entender a lógica linguística ou sua morfologia. Sempre foi algo mais, pois, assim como as duas línguas ocidentais citadas, a essência do meu interesse sempre foi a sua força mística. Ou seja, a “verbalização da força”.

Hã!?

Não entrarei em delongas ou querelas com meus amigos linguistas, até porque não teria como rivalizar com eles quanto ao conhecimento sobre as entranhas estruturais das línguas, ou como aprendi com o velho Kupi Kaxinawá: “as tripas e os nós da coisa”. Claro que as línguas indígenas não são iguais e, também, tenho cá as minhas preferências, mas de maneira geral acho todas muito lindas e que mantêm uma riqueza ímpar justamente por ainda se apresentarem, em muitos casos, em um formato mais primitivo onde “aquilo que se quer mostrar é realmente aquilo que se queria dizer ou mostrar” e que, ainda, carrega consigo toda uma mística e complementaridade com a natureza em que a mesma surgiu, bem como toda uma lógica de mundo. Assim, para mim, este pormenor faz com que a língua indígena, em sua essência, seja mais que uma ferramenta de comunicação. Ela representa muita coisa e possui muitas faces.

Ela detém o “poder da palavra” que tanto é apreciado e que faz parte das culturas orientais, principalmente daquelas reconhecidas como as mais espiritualizadas, como, por exemplo, a tibetana, a hindu ou ainda em culturas africanas como as usuárias do iboga. Em nossa cultura ocidental este espaço foi, ao longo de muitos anos, restringindo-se a espaços pré-determinados, como as orações/rezas e, em certos aspectos, as homilias.

As canções do Huni são um bom exemplo do poder místico que a verbalização do etéreo e dos encantos da natureza tem sobre quem os ouve. É possível sentir a força e a energia emanada de cada palavra, cada frase e como esta se mescla a todo um cosmos de poder e entendimento. Ouvir um bom txana (cantor de cipó) num ritual é uma experiência quase palpável do que estou afirmando. Para os que já experimentaram isso sabem bem o que quero dizer. Vejam bem, não estou sacralizando a língua indígena. É preciso citar isto antes de seguir neste texto, um tanto confuso para os que não conseguirem “sintonizar-se” com a mensagem.
Mulher Ashaninka - Foto: Talita Olivera

Este “poder” contido no ato de falar, em que as palavras formam frases e estas, por conseguinte tornam-se sentenças místicas que necessitam ser conhecidas e, por conseguinte dominadas, fica patente quando se faz a principal dieta de iniciação dos que desejam trilhar o caminho do sagrado indígena. como me disse, certa vez, o professor Nani Yawanawá ao recordar sua experiência durante a dieta a que se submeteu sob orientações do grande pajé Yawanani onde, segundo ele, após três meses de intensa preparação com uso das medicinas sagradas, ele sentia que se pronunciasse algo seria capaz de fazer o bem ou o mal a alguém, pois sentia que a força contida na natureza poderia ser canalizada e posta sob seu comando somente com a verbalização. Ouvi muitos relatos como este ao longo dos anos.

Outra face que se apresenta é o que chamo de “ótica de mundo”, Explico: Quando iniciei minhas subidas pelos barrancos dos rios acreanos me sentia incomodado quando, no meio de alguma reunião na aldeia onde estávamos falando em “portuguíndio” (português indígena), os locais passassem a falar somente em sua língua materna, excluindo-me totalmente do assunto. Porém, após alguns anos, passando a conhecer mais estas línguas, estas situações não me incomodavam mais, ao contrário, passei a ter o entendimento de que não era o fato de que o “assunto não me dizia respeito” e, sim que, para o entendimento total do assunto, este necessitava ter sua “estrutura com tripas e nós” postas sob a ótica linguística deles. Entendo aqui que esta ótica ultrapassa a lógica de língua como “ferramenta de comunicação” indo para um patamar mais elevado e rico do “sentido de mundo a partir da língua”. Afinal, a lógica do pensamento enquanto manifestação de mundo parte do princípio que a percepção deste se verbaliza através da linguagem.
Claro que depois de alguns anos de convivência, você começa a dominar um pouco a fala da língua, porém, a lógica da mesma demora mais um pouco. Afinal, “pensar em língua indígena” não deve ser muito fácil.

Outro aspecto da língua indígena é o seu simbolismo de identidade e resistência cultural: “o nawa ainda não conseguiu entrar nesse mundo ainda, não conseguiu vencer” – ouvi certa vez esta frase do professor Joaquim Maná.

- Como não? Muitos linguistas conseguem entender a língua indígena! – Posso até ouvir a manifestação de alguns estudiosos, mas, não é esta a questão. Entender sua estrutura não faz alguém falante da mesma, certo?
Prof Nani Yawanawá - Foto: Tashka Yawanawá

Observo que neste mundo globalizado, líquido e niilista em que vivemos atualmente, estamos diante de um novo processo de colonização cultural que vem trazer mais um aspecto que, em certo grau, mina nossa “identidade”, reduzindo termos e frases a palavras que sintetizam a ideia do que se quer informar, ou criando palavras que expressem todo um sentido de entendimento em uma única sentença. Também, novos aplicativos e necessidades linguísticas nos fazem migrar, a cada dia, a cada nova ferramenta, para uma dinâmica de transformação que, mais que nos “atualizar” e nos empoderar para a comunicação social e midiática atual, transforma-nos em um “novo ser”, planificando-nos em uma tábua cultural comum de “identidade” em que perdemos nossa singularidade regional ou familiar. A partir desta análise creio que é possível entender realmente a frase do professor Joaquim Maná.

Assim, mais que um gesto de valorização da língua, o fomento ao seu reconhecimento e utilização é acima de tudo a luta pela manutenção do “mundo como ele sempre foi” e que, para muitos indígenas e não indígenas, parece ser o que tinha (ou se tem) mais sentido.
Incrível que no Acre, por exemplo, um Estado onde existem cerca de quinze línguas indígenas, sendo que destas, ao menos umas oito são faladas socialmente nas comunidades, ou seja, é a língua de comunicação, não haja uma política de valorização destas línguas, política esta que vá além da publicação de cartilhas e livros didáticos para as escolas indígenas. É preciso que a valorização vá além dos limites das aldeias, englobando as cidades também, suas escolas e nichos de estudo. Até mesmo nas escolas indígenas (pelo menos no Acre), salvo aquelas em que a língua de instrução é a língua indígena, o seu fomento e fortalecimento ainda é muito incipiente.

Como tenho muito contato com as línguas nativas dos povos originários destas terras de Galvez, até porque trabalho junto a eles há muitos anos, confesso que, por vezes, me sinto meio que vendo o mundo através de um caleidoscópio que me ajuda a filtrar este mundo que me cerca e que, pelo menos para mim, torna-o mais suportável e decifrável. E dadas as aventuras e desventuras deste ano que finda, esse caleidoscópio foi fundamental para minha serenidade.

Crianças Yawanawá - Foto: Sérgio Vale
Por tudo isso é que vejo a iniciativa capitaneada pelo Prof. Dr. Joaquim Maná como um marco nesse processo, ainda mais pelas propostas e projetos que vêm a reboque desta iniciativa. Também, por toda a trajetória de vida deste professor, já devidamente apresentado por mim (clique aqui), é que acredito muito nesta caminhada que foi iniciada a partir deste curso de hãtxa kui.

Assim como Platão cita que “o sábio é senhor na própria casa”, ver os professores Huni Kui assumirem o protagonismo desta ação é, a meu ver, o caminho mais legitimo e que pode ter bons frutos para a manutenção e fortalecimento da língua materna. As sementes plantadas neste curso hão de brotar e dar bons frutos.


Boa semana a tod@s,

Um comentário:

  1. Teus escritos - já te falei isso - sempre me levam a querer mais! Teus assuntos sempre instigam a minha memória a "deslizar que nem canoa e voar que nem passarinho". Que maravilha de texto Jairo Lima! Obrigado por sempre nos trazer assuntos tão importantes! Esse, bem especial para mim. Assim como tu meu amigo, tb sou uma apaixonada pelas línguas dos povos originários. Gosto de sentir a força verbalizada desses universos únicos!
    Os cantos, durante as rodadas de Huni com os Huni Kui, ou as rodadas de Camarãpi com os Ashaninka, ou Kamalãpi com os Manchineri, meus parentes ancestrais mais próximos, etc.etc.,como tu citastes, são bons exemplos que temos dessa conexão ancestral.
    Para mim nesses momentos sagrados, não existe nenhum verbo do ego interrogando. Não existe a barreira da língua... Tudo se torna claro. Não existem dúvidas... É quando sentimos a “verbalização da força” desses universos únicos! E essa iniciativa dos Huni Kui, liderada pelo nosso querido Professor Doutor Joaquim Maná, muito me enche de esperança para a manutenção e fortalecimento da expressão e "verbalização de força" Huni Kui. Sua língua! Sua pátria!
    Obrigado Jairo por mais essa pérola!

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