sexta-feira, 13 de outubro de 2017

TEMPOS CONFUSOS E INSENSÍVEIS...

A crescente repressão que a arte vem sofrendo no Brasil é realmente uma questão complicada... mas você já ouviu falar do Genocídio Indígena?

Por: Raial Orotu Puri

Realmente vivemos tempos estranhos nessa terra que batizaram de Brasil... As notícias, movimentos, mobilizações e fogueiras cotidianas da internet de fato têm deixado explícito que, parece que quanto mais avançamos no tempo em termos históricos, mais as pessoas parecem ser invadidas por um certo quê de ethos medieval. Um dos campos que mais tem despertado este espírito é o das artes, com um conjunto de situações estranhas em que repentinamente exposições, quadros e performances são julgados por uma multidão de críticos de arte saídos do nada.

Bem, sobre esse assunto, eu gostaria de dizer que não tenho necessariamente uma opinião muito completa a manifestar. Antes de qualquer coisa, porque eu não sou crítica de arte, nem a consumo em profusão o suficiente para me arrogar a isto. Claro, não estou dizendo que só quem tenha alguma formação ou qualquer coisa do tipo possa omitir opiniões sobre o que é ou não arte. É só que eu penso que nesses casos deveria valer aquela regra de ouro de que o fato de eu não gostar de um determinado tipo de arte não me concede legitimidade para simplesmente decretar que aquilo de que não gosto não é arte.

Afinal de contas, existe uma diferença bastante considerável entre eu não gostar de algo, e acreditar que o meu ‘não gosto’ me dá algum direito quando a dar um veredito sumário acerca da impossibilidade de existência daquilo de que eu não gosto, não é mesmo?! Do mesmo modo que existe uma diferença enorme entre considerar uma arte ruim e associá-la à apologia a um crime dos mais graves, tal como é a associação que tem sido feita à pedofilia. (Cite-se sobre isso o caso de um quadro que era uma denúncia e que foi tratado como apologético...)

Bom, mas acontece que este não é um texto sobre arte, pois, como eu disse, embora eu também fique um tanto chocada com todas as notícias que cercam esta questão, e ainda que tudo isso que tem ocorrido, e as implicações disto em termos práticos me deixe apreensiva quanto aos rumos futuros desse mundão véio sem porteira no qual estamos vivendo, existe uma questão que me mobiliza e preocupa verdadeiramente.

Esta outra questão também tem a ver com esta enorme distância entre o ‘não gostar de’, ou ‘não concordar com’ e por isso tirar sabe-se lá de onde a crença de que se tem o direito de decretar a impossibilidade de existência, mas isto começou bem antes dos pseudo-críticos de arte do MBL, ou das patrulhas cristãs. Mais precisamente, em termos de Américas do Sul e Central, isto tudo começou em 12 de outubro de 1492, a data que marca o início do fim do mundo para os povos originários.

E sim, há outras datas. Outros momentos em que chegaram aqueles barcos, com aquelas pessoas. E há também pessoas que não chegaram de barco. Em alguns lugares, elas vieram em cavalos, carros, a pé, marchando em grandes pelotões, deixando para trás seus rastros de sangue... Independentemente do modo como chegaram, essas pessoas chegaram. É. Pessoas brancas, no caso.

E, bem, se tivessem chegado simplesmente, até que não estaríamos aqui considerando isto como um problema, afinal de contas mudar de ares é algo que pode rolar mesmo. Pessoas mudam de cidade, de estado, de país, de continente. Faz parte. O problema é que já havia pessoas. Muitas pessoas. Nações inteiras. As estimativas dão conta de que em 1492,quando se deu a invasão, as Américas possuíam em torno de 80 milhões de habitantes.

Mas então, aconteceu que aqueles recém-chegados tiveram mais ou menos a mesma
pretensão dos críticos de arte de agora, e, ao se depararem com os habitantes dessas terras, consideram que por não concordarem, não gostarem e, sobretudo, não compreenderem os modos de vida daqueles indivíduos, acreditaram que isto lhes dava total respaldo para decretar a inviabilidade daquelas nações, culturas e vidas. E, por isso, começou o fim do mundo.

Mas acontece que dito dessa forma me parece que fica algo meio distante na história... Fica distante e desimportante, sobretudo para quem não é indígena.

Acredito que seja esta a explicação para o fato da indiferença crônica que parece cercar o discernimento das pessoas para o fato de que esse Genocídio persiste até os dias de hoje, mudando vez ou outra as suas roupagens, adotando métodos mais modernos, atacando outras frentes e incidindo sobre as mais diferentes esferas. Pois é. Talvez seja essa a explicação para o fato de que, por exemplo, ano após ano, desde 1993 sejam publicados relatórios anuais sobre a violência contra os povos indígenas no Brasil, e ainda existam pessoas que têm o desplante de ignorar este fato, ou que, apesar de saberem do que está se passando todos os dias bem do seu lado, acreditarem que simplesmente não têm nada com isso. E que está tudo bem, afinal de contas, ‘não é com elas’.

A propósito, acaba de sair o relatório* com dados de 216: 118 assassinatos, além de 106 suicídios; 735 crianças indígenas menores de 5 anos morreram por causas diversas, como em decorrência da desnutrição infantil. O maior número de vítimas registrada foi Roraima, com 44 assassinatos enre os Yanomami. Em seguida, o Mato Grosso do Sul, onde vivem os Guarani-Kaiowá, onde ocorreram 18 mortes por agressões e 30 suicídios. Depois, temos 11 casos no Ceará e 07 no Maranhão. Além disso, a partir de 2017, o Cimi passou a alimentar com os dados de assassinatos de indígenas a plataforma Cartografia de Ataques Contra Indígenas – CACI**. A sigla caci forma uma palavra que na língua Guarani quer dizer dor. Dor... Mas em quem é que dói, não é?

É... eu sei. A comoção seletiva é realmente uma das obscenidades mais palpáveis da humanidade – e há quem fique preocupado com quadros e pessoas peladas em museus! Me entendam, meus caros: não estou aqui para julgar o nível de indignação de ninguém acerca de coisa alguma. Mas será que dava para gastar pelo menos um pouquinho dessa paixão que vocês têm em se revoltar com o que está rolando no mundo artístico e orientá-la para outra direção? Qual? A direção de dar-se conta de que 12 de outubro marca o ‘aniversário’ dos séculos do Holocausto Indígena?

É, eu falei em Holocausto. Aquela palavra que é associada ao genocídio de seis milhões de judeus. E antes que alguém venha com um ‘ah, mas...’, vamos lá: eu NÃO estou dizendo que a Segunda Guerra não tenha sido um horror inominável. Foi mesmo. Terrível, atroz, assustador. Mas acontece que a implementação de uma política de Estado visando o Genocídio de um determinado grupo humano não é algo que aconteceu ‘só’ com os judeus. Aconteceu e acontece em diferentes partes do globo. Na Europa sim, mas também na África, na Palestina, na Ásia e sobretudo aqui, nas Américas, e mais precisamente ainda no Brasil.

A diferença entre um e outro caso passa pelos métodos empregados, mas o resultado é o mesmo: Conforme artigo publicado na mídia ‘Crónicas de latierrasin mal’***, “Estima-se que no século XVI os espanhóis e os portugueses obtiveram sem câmaras de gás ou bombas os meios para fazer desaparecer entre sessenta e cento e cinquenta milhões de índios na América Latina”.  E eu me pergunto, vezes sem cessar, é se por acaso, só porque não houveram aqui as bombas nem o gás, isso é encarado como tão menor e menos aterrador. É isso, então?

A propósito disto que estou comentando, me lembro de um caso que me ocorreu em 2015,
ocasião em que estava em meio à organização de uma campanha de ‘ajuda humanitária’ para recolher donativos para serem levados ao Mato Grosso do Sul após a onda de ataques daquele ano. Durante o processo, uma jornalista contatou-me solicitando que escrevesse um texto que apresentasse a ação que vínhamos realizando, e também falasse um pouco sobre aspectos culturais dos Kaiowá. Tudo ia relativamente bem, até o momento em que ela enfatizou a necessidade que meu texto fosse curto, objetivo, e apresentasse de forma suscita os motivos pelos quais as pessoas deveriam se sensibilizar por essa causa, e o porquê era importante defender os Kaiowá.  

E olha, gente, eu procuro ser bastante solícita com pessoas que me procuram para falar sobre a luta indígena, buscando sempre atender a essas solicitações da melhor forma possível, com a maior quantidade de material que eu tiver. Porque a verdade é que isso é muito raro. Tão raro que dói, para ser mais precisa.

Nesse processo, eu me esmero bastante na minha tentativa de ser educada nas relações que estabeleço com as pessoas. Mas tem horas que fica difícil! Essa foi uma das ocasiões em que foi impossível. Porque, vejam, eu não ignoro que ao que tudo indica, estamos vivendo uma realidade as pessoas estão em um estado de apatia e letargia generalizada para com quase tudo. Tem sido um tempo onde a insensibilidade e a superficialidade parecem ser a pedra de toque das relações humanas. A despeito disso, eu realmente não consigo lidar bem com alguém que me pede que eu indique o porquê as pessoas devem se sensibilizar com o fato de que tem gente sendo morta, muito menos, acho que faça qualquer sentido a necessidade de indicar por que uma vida humana – qualquer uma – é importante!

E isso me faz lembrar uma postagem também de mais ou menos 2015, na qual a Valdelice Veron falava sobre a ocasião em que ela foi chamada a falar na ONU sobre o sofrimento que eles têm passado no Mato Grosso do Sul. O relato dela foi consternado, porque quando chegou o dia dela fazer sua fala, a mediadora lhe avisou que ela teria 11 minutos para levar sua mensagem. Ah, sim... questão de protocolo, não é? O tempo, é preciso ser objetivo e conciso para que a fala não seja prolixa demais, afinal de contas, ela estaria falando diante dos líderes de diferentes nações do mundo, e o tempo deles para dispensar sua atenção para questões que acontecem em um estado remoto de um país de periferia é curto. Claro. Tudo muito compreensível. Mas será que também não poderia ser compreensível a dor de quem viu seu pai, seu marido, filhos, irmãos, amigos serem assassinados, de quem viu tantos outros se suicidando devido à dor insuportável de seguir nesse mundo que nos quer ver morto não tem como ser reduzida a uma fala ‘curta, sucinta e objetiva de 11 minutos’?
Como é que se pode cobrar de uma filha que perdeu seu pai de maneira bárbara e terrível que narre em 11 minutos o significado de toda dor e ausência que isso representou em sua vida desde que ele se foi? Como falar em 11 minutos disso, e do fato de que os assassinos de seu pai e de tantas outras lideranças permanecem impunes passados mais de uma década de tais crimes? Como falar em 11 minutos sobre mais de uma centena de comunidades que vivem espremidas entre cercas, asfalto e soja, vítimas de ameaças, agressões e assassinatos cotidianamente? Me desculpem... nos desculpem. Mas 11 minutos não é bastante para falar da dor da perda de uma única dessas vidas, e não é nada para abordar 150 milhões de vidas que se foram...

E é por isso mesmo que este tipo de coisa me deixa muito triste, e realmente incomodada. Não bastante essa dor perene que todo mundo que tem sangue indígena passa todos os dias nesse mundo, porque todos os dias somos atacados e assassinados, nós ainda temos que ser claros, concisos nas nossas explicações para que os brancos entendam porque dói tanto?!

E, sabem, se eu acreditasse que realmente isso poderia mudar a cabeça das pessoas, eu até me proporia a sair por aí no melhor estilo ‘Testemunha de Jeová, batendo de porta em porta para perguntar ‘Olá, a senhora tem um tempo para ouvir a palavra do Genocídio?’ Mas acontece que não me parece ser assim que as coisas mudam. Porque me parece que não é possível ensinar as pessoas a sentir a minha dor e desespero. Acho que essas coisas a gente não ensina, sobretudo vivendo em um mundo em que as pessoas parecem cada vez mais anestesiadas e incapazes de sentir o que quer que seja.

Raial Orotu Puri (Andréia Baia Prestes Puri) é graduada em Direito e  doutoranda em antropologia pela UFPR. Mora no Acre onde atua na Divisão Técnica do IPHAN/AC e na Assessoria Jurídica da Federação do Povo Huni Kuin do Acre (FEPHAC).


* Todas as imagens são de autoria de Letícia Abelha, Instrutora de Yoga e Artista Plástica mineira. Para saber mais sobre seu trabalho visite sua página:  Letícia Abelha Artes
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* Para acessar o Relatório Anual com dados da violência contra indígenas de 2016, acesse: http://www.cimi.org.br/pub/Relatorio2016/relatorio2016.pdf
** A plataforma CACI é acessível pelo link: http://caci.cimi.org.br/#!/?loc=-13.068776734357694,-63.80859374999999,4
*** Link para a matéria completa do site Crónicas de latierrasin mal: http://cronicasinmal.blogspot.com.br/2016/02/memorias-del-holocausto-indigena-en.html?spref=fb

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