quinta-feira, 14 de junho de 2018

AINDA NO PAPO SOBRE O KAMBÔ...

Por: Jairo Lima

Entramos no sexto mês do calendário gregoriano, dedicado à esposa do deus Júpiter, e aqui pras bandas do Juruá, onde, literalmente, “o vento faz a curva” entramos de vez no ciclo dos famosos e muito buscados festivais indígenas. Eu mesmo estou me planejando para acompanhar uns três neste ano.

Mas é nesse período, também, que as atenções redobram para o ‘enxame’ de espertinhos e ‘gurus’, que também se aboletam e infernizam tanto as comunidades quanto o juízo e o bom senso de qualquer criatura pensante.

É a bagaceira estereotipada de sempre. É incrível como essa galera não se toca. Pior: geralmente tem um bando de seguidores, que, em menor ou maior grau, seguem estes figuras como se estivessem às portas da perdição infernal… enfim.


Fico aqui matutando no tanto de kambô que será comercializado e clandestinamente transportado para fora das comunidades, gerando uma boa grana para esses caras.

Há pouco tempo estourou nas redes sociais uma confusão obscura envolvendo alguns dos ‘filhos do Tio Sam’, que, assim como muitos, se enfiaram numa terra indígena sem se preocupar em informar a nenhuma instituição que, minimamente, pudesse dar alguma formalidade e monitorasse essa estadia.

Vieram, ficaram e se foram e, em seguida, veio a confusão e denúncia de que haviam sido molestados na comunidade. Certo, não darei nenhum contraditório na coisa, até porque, em meio à obscuridade da coisa toda, está sendo realizada uma investigação sobre o caso, mas, o ponto aqui é outro e uso essa visita para citar algumas coisas bem interessantes - e bizarras - que a história toda me possibilitou conhecer, e que, confesso, só fez aumentar minha descrença quanto ao caráter humano frente ao ‘deus-money’.

Entre as tralhas da coisa, com direito a site do grupo e tudo mais, chegou-me às mãos (mentira, aos olhos pois ainda está em formato digital) algo que jamais pensei encontrar: um diploma atestando que seu detentor é um aplicador de kambô formado… - É mole?

Juro pra vocês, queridos e raros leitores, que, passado o asco inicial  e aquele enjoo típico, segurei-me para não rir até que os gazes me fizessem passar vergonha diante dos que comigo se encontravam. O motivo do riso? Explico: o ‘professor’ é um txai, querido, estudante da tradição, mas, que, como ele mesmo sabe, não seria capaz de atestar algo como isso, ou mesmo, como me disse, certa vez seu irmão, ser capaz de curar uma dor de barriga.

Mas calma…. o ponto aqui não é o fato do txai ter assinado esse ‘diploma’, até porque, certamente, isso nem tem muito sentido pro seu povo. O ponto aqui é a canalhice de quem inventou essa presepada para se dar bem, e ganhar grana das almas que se deixaram enganar. Estas ‘ovelhas’ creem que gastando seus dólares ou euros, se deslocando até aqui, após suas duas semanas de vivência numa comunidade, claro sob tutela do seu ‘guia’, estão capacitados para saírem por ai aplicando kambô mundo a fora… que babaquice… desculpem, o correto é: que idiota isso.

Fico pensando como é que uma criatura, que tem acesso a um bom nível social e cultura de entendimento (até porque não é qualquer um que tem grana para se desbundar de seu país de origem e vir pra cá) acredita num troço desses.

O pior é que isso tá se espalhando, deixando de ser uma pieguice ignara dos ‘gringos’ e tornando-se comum, aqui mesmo na Pindorama.

Mas, essa história aí do tal diploma disso ou daquilo nos trás algo muito importante para pensarmos: é possível se tornar um aplicador de medicinas, ou ser iniciado nos segredos místicos dos curadores e pajés indígenas através de ‘cursos’ e/ou vivências?

Eu tenho minha opinião, curtida em duas décadas de caminhadas e vivências nessas aldeias do Aquiry, mas, vai ver que por causa disso, talvez minha opinião seja por demais ‘provinciana’ ou ‘atrasada’. Por isso mesmo que não responderei a minha própria pergunta, deixando para os leitores refletirem, mas, aproveito para fazer outro questionamento que, aliado ao do parágrafo anterior pode ajudar na reflexão: você faria uma cirurgia no cérebro, ou um transplante de coração ou mesmo uma simples retirada das amídalas com uma pessoa que fez uma “vivência” de alguns dias (ou semanas intercaladas em anos), num hospital (mesmo sendo este um dos melhores do mundo)?

… Pois é… Não precisa ser um gênio da raça para ter uma resposta a estes questionamentos.

Mas quer saber? Tudo não passa de um negócio para os que inventam esse tipo de bad trip com perspectivas de faturar uma grana, ou ter o ego massageado por um grupo de seguidores. O que me deixa ‘pê’ da vida é que esses malandros envolvem os txais nessa presepada, muitos destes que, devido a cultura tradicional ser forte e seu entendimento das artimanhas de nossa sociedade caótica e doente ser pouca, serve de endosso pras presepadas desses charlatões, com seus grupos e ‘comunidades’ de algum tipo de caminho do sagrado new age pirotécnico e grotesco.

A coisa aqui nem se trata de pôr os indígenas como os coitadinhos que são sempre enganados, nada disso, conheço um bocado de ‘pajeca’ dentro das próprias comunidades também, que se deixam ludibriar pelos encantos coloridos das viagens e babação desse circuito neo-xamânico. E porque não? Mas estes são poucos, pois muitos se colocam como ‘artistas’ da tradição (Txana), o que é uma verdade e vão mundo afora divulgando a cultura de seus povos. Muitos destes, como o txai Benki, o txai Bira, são como arautos da natureza.
Agora, se o nawa*  vê alguns desses muitos txai (algum destes ainda adolescentes) como o sucessores do Dalai Lama ou o próximo messias, aí é problema do nawa, pura falta de bom senso.

Sempre afirmo que tem muita gente séria que trata com respeito a coisa toda, mas acaba sendo prejudicado e mal-visto por causa dessa meia-dúzia de ‘pirralhos’ do espírito que só pensam em se dar bem por causa do dinheiro. Isso sem falar dos que se apresentam e divulgam rituais se passando por indígena do povo Shanenawa, Kaxinawá e de outros daqui da região, ou aqueles que afirmam ter recebido ensinamentos e poderes ‘desse ou daquele pajé’, o que os habilita para serem xamãs.

Para estes, como aqueles que se valem de seus diplomas, ou que facilitam formações do tipo, buscando somente o ‘deus-money’ digo: o money é o papel higiênico do capeta, sendo assim, a busca cega por esse papel higiênico nada mais é que o processo de se melar nos excrementos dele, de maneira que, aqueles que nisso se metem, nada mais são que um objeto com o que o capeta (e os yuxins do mal), limpam a bunda.

Se liga… o caminho espiritual e todo o conhecimento por trás de uma simples aplicação de kambô é muito mais que um pedaço inútil de papel colorido…

Boa semana a tod@s…
 


* Não-índio.

Jairo Lima é indigenista, graduado em Pedagogia pela UFAC, com especialização em antropologia. Atua há mais de vinte anos junto aos povos indígenas do Acre e desde 2012 é servidor da FUNAI, na região do Juruá, Acre.

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Imagens: Imagem 1 - Guillem Mari; Imagens 2 - Capa do livro "Yuxin -Alma (Kaxinawá) "- Ana Miranda; Imagem 3 - Diana Yaka Paris.

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