segunda-feira, 6 de agosto de 2018

SOBRE PÁSSAROS E IMITAÇÕES - Parte I

Por: Raial Orotu Puri
Prólogo: “O balé de fim de tarde” 
...Desde que me mudei para a banda do Juruá no Acre, resido próximo da Catedral de Cruzeiro do Sul, a qual é parcialmente visível pelas janelas laterais do meu apartamento. Através destas janelas, eu também vislumbro um parcial do espetáculo que se dá todas as tardes na praça de frente da igreja. Vez ou outra, quando tenho tempo livre, me dedico a assistir a  toda apresentação do belo balé aéreo: a cada entardecer, durante cerca de meia hora precedendo o ocaso, centenas de passarinhos executam um conjunto de evoluções sincronizadas antes de pousar ao longo dos fios elétricos que ficam na extremidade da praça, aonde se acomodam e passam as noites. Devem haver explicações científicas, advindas da Ornitologia, ou de algum outro ramo de estudos sobre o comportamento de animais sobre tal ‘fenômeno’...  eu me limito a achar belo, poético e digno de alguma filosofia...
Escrevo este texto justamente por causa dos pássaros – os bailarinos, e alguns outros, – e por um tanto de coisas que com eles se relacionam... É que ultimamente tenho sido levada a pensar sobre este tema por conta de algumas situações vivenciadas, e que, por associação, conduzem meu pensamento à algumas classes de criaturas aladas. 



Nesta reflexão, quero citar uma espécie em particular de ave, a qual é portadora de uma capacidade muito admirada. Faço-o em conexão com uma ‘prosa’ que quero ter por aqui, e que vem se condensando já há algum tempo em meus pensamentos. Como não raro acontece nos meus textos, pode ser que a princípio você que lê não consiga entender aonde é que eu vou juntar o lé com o cré... mas acredite, eu vou. “Aguarde e confie!”. Pois bem, vamos lá!

Já tem um tempo, eu tenho notado que existe um conjunto de comentários que eu classifico como ‘formas peculiares de expressar preconceitos’, pois que os mesmos em geral vêm vestidos sob uma capa de pretensos elogios, mas apesar disso, não conseguem esconder o que de fato são. Algumas destas frases foram direcionadas a mim, outras vezes, tratavam de terceiros. Embora variem de conteúdo acabam por ser semelhantes naquilo que expressam. 


E eu sei que eu faço o tipo da pessoa que se incomoda com coisas que nem sempre causam incômodos em terceiros, o que muitas vezes me leva a ser taxada de chata... E provavelmente eu seja mesmo chata. De todo modo, convido-os agora a ler comigo as citações mais peculiares do conjunto abaixo, e após este exercício, vamos conferir se realmente o problema sou eu: 


“Ela fala bem demais para ser indígena... Se expressa muito bem, articula bem. Muito desenvolta. Não parece indígena de jeito nenhum!”


“Este texto está bem escrito demais para ser de autoria de uma indígena” 


“Olha, desculpa, mas é que não dá para acreditar que alguém inteligente desse jeito seja indígena.”


“Fiquei impressionado com ele. Ele fala tão bem, tão desenvolto. Ele foi criado por brancos? Não? Nossa é impressionante!”


“Você fala inglês? Nossa, nem eu falo inglês! É muito impressionante para uma indígena.”


Percebem? (espero que sim!). Mas caso não tenham percebido, quero arrematar com uma outra frase que ouvi essa semana, e que, embora seja uma construção de raciocínio contrário das citações acima referidas é uma irmã gêmea delas, porque aponta exatamente o racismo que perpassa todo o conjunto: 


“Eu acho que a pessoa que precisa ser contratada para desempenhar essa função [de digitador] não pode de jeito nenhum ser um indígena. Tem de ser alguém que tenha domínio desse sistema, que seja rápido, atento, com responsabilidade.”


É isso então, cara gente branca? 


Aparentemente existe um livro chamado “Manual do Indígena de Verdade”, aonde consta um conjunto de regras para ser classificado como ‘verdadeiro’, e que também prevê os casos que a gente perde a carteirinha do clube, sendo que as infrações previstas são falar ou escrever bem (seja lá o que isso signifique para vocês), ou tenha um nível de engajamento ao trabalho, ou seja responsável, atento, rápido, capaz de dominar sistemas, etc, e tal...  E creio que provavelmente se trata de uma edição revisada, já que aquela parte sobre usar celular e dirigir carro já estava pegando mau para a cara de vocês...  

Bom, mas é claro que eu não li esse livro, e por isso eu não sabia que não podia ser capaz de digitar, nem de ser atenta, tampouco responsável. Também não sabia que, como indígena, eu estava proibida de ser capaz de me expressar numa língua que não é minha, e que, ao fazer isso, eu inadvertidamente estava cometendo um atentado contra a minha própria identidade... Que coisa, não?! Ah, gente. Fala sério, né? 

Falando francamente e sem ironias, é bem racista acreditar que um indígena, pelo simples fato de o ser, não pode falar de uma determinada forma, escrever como bem entender, aprender a usar um sistema, ou ter o domínio de outro idioma. Aliás, a propósito deste último ponto, eu realmente desconheço o motivo de tanto alarde, considerando a enorme quantidade de indígenas que são, no mínimo, bilíngues. 


E sim, é claro. O aprendizado dessa segunda língua, o português, não foi um ato de vontade, mas uma imposição. Seja como for, aprendeu-se. E com esse aprendizado, e esse ‘contato’, abriu-se a porta para o aprendizado de muitas outras coisas. 

E é por isso que eu me lembro dos pássaros... 

Aqui no Acre, ele é chamado Japiim, mas é uma ave de nomes múltiplos como é sua voz:  japiim-xexéu, japim, japuíra, joão-conguinho, xexéu-de-bananeira, ou simplesmente xexéu; trata-se de uma ave muito conhecida pelo fato peculiar  de ser capaz de reproduzir perfeitamente os sons emitidos por outros seres, copiando desde outros pássaros*,  passando por outros animais e chegando até mesmo, há quem o diga, a reproduzir de forma idêntica barulhos mecânicos, como buzinas e alarmes de carros. 


Para muitas culturas, esse pássaro assume ares de sacralidade devido às suas capacidades, e por essa razão se considera mata-lo um tabu. Minha vó Puri, por exemplo, me contou que esse pássaro distribui ao nascer de cada criatura a sua voz, e colhe o suspiro de todos os seres quando eles partem do mundo, e que por isso, ninguém o deve matar. Caso desobedeça-se a esta proibição, a floresta ficaria silenciosa, pois já não haveria mais o doador dos sons. 


No idioma hãtxa kuin do povo Huni Kuĩ, o Japiim é chamado de Txana, e esse é também o nome que é dado aos cantores deste povo. Contam que seu primeiro txaná, Shamayabi Txaná, aprendeu com os pássaros os Pakarῖ, cantos sagrados utilizados até hoje em seus rituais e festividades. 


A história conta que Maná, um menino que desde pequeno revelou-se muito inteligente e alegre andava certa vez sozinho na mata, quando foi convidado pelos pássaros para participar com eles de uma festa no alto de uma Samaúma. Ele foi, e participou daquela e de várias outras festas, nas quais aprendeu com os pássaros e os demais animais os cantos e os ritos de iniciação do Nixpu Pima**. Passado certo tempo, ele ensinou ao seu povo aquilo tudo que havia aprendido e, por isso, ele foi chamado de Shamayabi Txaná, e até hoje os Huni Kuĩ seguem cantando aqueles cantos, aos quais se somaram outros, que foram recebidos pelos Txaná que vieram depois do primeiro.



Igualmente, as ainbu kenaya, as mestras do kenê, as mulheres Huni Kuĩ que dominam a arte de traçar os padrões gráficos tradicionais deste povo são também chamadas de txana ibu ainbu, dona dos Japiim, por que através de seus traçados geométricos elas são capazes de imitar os padrões existentes na natureza. Assim, o dom da tecelagem é assemelhado ao cantar, posto que também é derivado de observação, aprendizado e imitação. Essa arte foi ensinada às artistas por Sidika/Yube, a Jiboia, – também responsável por dar aos homens o conhecimento do nixi pae, – e é transmitida de geração em geração desde tempos imemoriais.

(A propósito, convenhamos que desenvolver aptidão para usar computador, filmadora e essas outras parafernálias do mundo dos brancos é ‘fichinha’, para quem aprende a cantar uma língua que concentra o poder e a força de uma miríade de animais, ou domina o poder de traçar em fios desenhos que refletem imagens do mundo, não acham?) 

Eu uso aqui o exemplo dos Huni Kuĩ para falar a propósito de algo que está intrínseco à natureza indígena: a nossa existência é feita da transição de fronteiras. Isso é algo que vem desde o nascimento, porque, como eu já disse em outro contexto, o nascer com forma humana não é garantia de humanidade, a qual precisa ser também aprendida. E esse transitar prossegue ao longo da vida, a cada nova aquisição, a cada novo aprendizado, e está incluso tanto naquilo que se conquista junto do próprio grupo de patentes, quanto aqueles aprendizados que exigem viagens mais longas, para muito longe de casa, ou para dentro de si mesmo. 


E, nesse caminho de aprendizado, há os que realmente se aventuram para bem mais longe, e que transpõe algumas fronteiras muito arriscadas, junto de perigosos predadores, e de outros seres muito diferentes, habitantes de mundos absolutamente estranhos e estrangeiros daquilo que conhecemos por lar. As cidades, por exemplo...


Portanto, há esses que, por escolha, necessidade ou imposição, acabam indo buscar neste mundo tão esquisito e hostil, coisas que julgam necessário aprender. É um percurso difícil e o preço a pagar é alto, ninguém tem dúvidas. E não fiquem achando que a gente está nessa porque adora. Estamos por um propósito, por obrigação, por necessidade, e, as vezes, por falta de opção, mas daí a gostar, são outros 500 – a maioria dos indígenas que eu conheço preferiria mil vezes largar essa droga toda, e voltar para um lugar aonde as coisas façam sentido, e onde não seja-se desacreditado sobre o que é praticamente o tempo todo. 


E veja como é engraçado: se eu faço algo malfeito, eu sou alvo de racismo. Se faço bem feito, também, porque afinal de contas, eu sou índia, o que me credencia apenas ao fracasso. Acontece, gente, que contra essas credenciais, existe 518 anos de experiência em estratégias de sobrevivência. 


Pois sim, quando a gente quer a gente faz, e muito bem, o que precisa ser feito. Com o mesmo dom dos Japiim, conseguimos imitar qualquer som, qualquer voz, qualquer canto, seja ele falado, ou escrito. Mas olha só como é o racismo, não é? Justo por fazemos algo tão bem quanto ou melhor do que o rayon, rola descrédito. Porque, é claro, na cabeça ariana dos racistas, o indígena precisa necessariamente não dar conta. Precisa ser sempre aquele que não consegue, que precisa de ajuda, apoio, assistência, tutela. Lamento informar, mas não é bem por aí, e indígenas os há de todos os jeitos, inclusive aqueles que são mais competentes do que você! Beleza?   


Mas é claro, de tudo o que aprendemos com os Japiim, existe um último ensinamento que precisa, a toda força, permanecer. Apesar de aprender todas as vozes de todos os seres, há algo que permanece imutável neste pássaro, e que é precisamente o que permite a continuidade do seu dom: O Japiim só é capaz de aprender tanto, porque nunca deixa de ser o que é. Ele pode imitar o mugir do gado, o canto do galo, o esturro da onça, mas ele não se transmuta nunca em nenhum desses seres. Ele pode emitir um mugido, mas não será um boi; pode imitar o apito da locomotiva, mas não se transformará num trem. Não o fará, pois que, se o fizer, deixará de ser capaz de imitar os outros seres, encerrando-se em uma única natureza, uma única forma, um único som. 



E assim, sendo sempre pássaro, enfeitado sempre de suas próprias plumas, ele segue o mesmo. E porque não deixa de ser ele mesmo, O Japiim não perde a capacidade de fazer seus ninhos, chocar seus ovos e cuidar de suas ninhadas de filhotes, que aprendem com os pais a mesma capacidade de reproduzir a voz de todos, sem esquecer nunca do que se é. 

Esta importante lição precisa ser guardada por todos nós, que nos aventuramos nesses caminhos tão distantes de nós mesmos para aprender e amealhar saberes. Nós vamos... aprendemos. Ouvimos essas vozes todas... Mas não podemos de deixar de ser nós mesmos. Não trocamos nossas plumas por outras, nem devemos jamais nos transmutar naqueles de quem aprendemos. Não, não estamos na cidade para ‘virar branco’. Idealmente, estamos aqui de passagem. Este lugar não nos pertence, não nos contém, e, como os rayon estão sempre a nos lembrar de uma ou de outra forma, aqui não somos sequer bem-vindos. 


É... 


Mas ok. Não importa, e eu não estou necessariamente reclamando disso... Acho que não se sentir confortável faz parte também da experiência e até ajuda a que se saiba a que se veio... E, de todo modo, assim como para os pássaros que bailam no fim das tardes da praça de Cruzeiro do Sul sabem, eu também sei: 


Existe sempre uma linha, um fio condutor; um ponto de partida, que é também de chegada. E entre o partir e o chegar, há a dança... O bailado pode ser, e é bonito, pode chamar a atenção e despertar interesse, pode ser alegre, pode encantar, ou pode ser encarado como algo sem qualquer sentido... Mas o que importa no fim é saber que depois que se termina de dançar, existe um Lugar para onde se pode voltar, e pousar em segurança... 




Raial Orotu Puri (Andréia Baia Prestes Puri) é graduada em Direito e  doutoranda em antropologia pela UFPR. Mora no Acre onde atua como antropóloga no Distrito Sanitário Indígena do Alto Rio Juruá - DSEI-ARJ.


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** Dizem que o único pio que o Japiim não imita é o do Tanguru-Pará, porque esse só emite seu canto para alertar sobre um perigo. 


*** Nixpu Pima é a designação para o complexo rito de transição para a vida adulta entre os Huni Kui. A descrição completa do rito pode ser lida na obra de Noberto Sales Kaxinawá, disponível no link: 


 http://docplayer.com.br/58774713-Nixpu-pima-o-ritual-de-passagem-do-povo-huni-kui.html


- Todas as imagens são de autoria da artista plástica: Willow Arlenea

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