segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

DEPOIS DE TANTO TEMPO EM SILÊNCIO, O QUE DIRIA RAIAL ‘DISSO TUDO QUE ESTÁ AÍ’?

Por Raial Orotu Puri
Eu tenho estado silenciosa há um bom tempo. Não é que não aconteceram coisas neste período. Aconteceram. Até demais... E, no entanto... No entanto, às vezes, a tristeza, ou a raiva, ou revolta, ou todas essas coisas, recaem sobre nós de forma tão pesada que fica difícil encontrar palavras que possam ser encadeadas em frases e que permitam dar sentido ao que sentimos. 

... Ocorre também que o silêncio, depois de certo tempo passa a ser um lugar confortável, depois que nos acostumamos com ele. E há ainda a sensação de inutilidade das palavras. Ou de fadiga por ver que o esforço de usá-las foi inócuo. E há também a opinião dos nobilíssimos Guarani, que dizem que o ‘silêncio é o som dos sons’. E é...
Mas... “Você está em dívida com o Blog”, foi a intimação que eu não posso recusar jamais, vinda de meu amigo Samman Poteh..., ele disse. Ele tem razão. Eu sei. E se existe alguém que pode me mover do silêncio, sem dúvida, é ele, que começou esta história de escritas. Pois bem... Tentarei então dizer de tudo quanto houve, a ínfima parte que couber em minhas linhas.

E o que tanto aconteceu?  



Muito. Ou, talvez, nem tantas coisas assim, já que, quando se analisa mais a fundo, tudo parece representar nada mais que as facetas de uma mesma questão, a mesma de séculos, e que talvez agora só esteja tornando-se mais rápida, por conta da Era atual, aonde tudo é acelerado – se antes falava-se que fulano perdeu o bonde da história, imagina agora que a história anda de trem bala, né?
Mas que seja... vamos fazer uma breve retrospectiva, pulando aquela parte sobre as Caravelas, porque esta tecnicamente já é conhecida... 

Creio que eu devo falar primeiro de um Museu que queimou... citaria aonde ardeu no meu povo, e no de outros parentes que viram desaparecer no fogo o pouco do quase nada que lhes restava de suas culturas já massacradas. Mas sobre isso, ainda que aquele fogo tenha me queimado e me feito arder também, lembro do que disseram alguns grandes e sábios parentes, inclusive meus tahé-antah em sonho naquela mesma noite de fogo: a memória vive em nós, os que vivemos e resistimos, e que enquanto pudermos lembrar, seguiremos de pé... 

É lindo e reconfortante pensar assim... mas ainda há muito o que falar: acontece que nós, os que vivemos, estamos sendo alvejados. Houve Mariele, uma mulher, uma voz, uma grandeza toda assassinada... E ainda que a resposta sobre o ‘Quem?’ seja claríssima... a impunidade segue sendo sempre a tônica. Porque afinal, antes dela, depois dela... há Marçal Tupã-i (1983), os irmãos Atikum Abdias João e Abdon Leonardo (1990), Chicão Xucuru (1998), Marco Veron (2003), Dorival Benites (2005), Dorvalino Rocha (2005), Xurite Lopes (2007), Ortiz Lopes (2007), Oswaldo Lopes (2009), os irmãos Genivaldo Vera e Rolindo Vera (2009), Nísio Gomes (2011), Teodoro Ricarde (2011), Oziel Gabriel Terena (2013), Marinalva Manoel (2014), Mario Juruna Souza Guajajara (2014), Ambrósio Guajajara (2014) Simeão Vilhalva (2015), Carlos Alberto Domingos Kaxinawa (2015), o pequeno Vitor Kayngang, de dois anos de idade (2016), Clodiode Aquileu Rodrigues de Souza (2016), Genésio Guajajara (2016) Aponuyre Guajajara (2016) o bebê de um ano Leudo Manchinery (2017), Paulo Sérgio Almeida Nascimento (três dias antes de Mariele...), Davi Mulato Gavião (outubro de 2018)... 

Antes ainda, houveram 3.500 Cinta-Larga (RO), 2.650 Waimiri-Atroari (AM) , 1.180 Tapayuna (MT), 354 Yanomami (AM/RR) , 192 Xetá (PR), 176 Panará (MT) , 118 Parakanã (PA), 85 Xavante de Marãiwatsédé (MT), 72 Araweté (PA) , cerca de 14 Arara (PA) , que totalizam 8350 mil, número esse  certamente impreciso e  muito inferior de indígenas assassinados em massacres, esbulho de suas terras, remoções forçadas de seus territórios, contágio intencional por doenças, prisões e torturas durante a Ditadura no Brasil... 

Eu posso passar a vida escrevendo aqui esses citando esses nomes e números que me dão náusea, e ainda assim, faltarão nomes, histórias... inclusive porque entre aqueles cujo nome se registra, há um contingente imenso de mortos que não entram em quaisquer estatísticas, e cujos nomes e histórias só serão lembrados com dor por aqueles que ficam. 

Dor... Dor também na morte daqueles que a provocam. Gente que decide morrer porque esta é uma perspectiva menos dolorosa do que aquilo que é sua realidade... E, dado que essa realidade foi criada por ação daqueles que nos negam a existência, é justo que esses números figurem igualmente na conta dos assassinatos, porque é disso que se trata! Sim, muitos de nós estamos optando por morrer, mas ainda assim, quem nos mata é o Estado, é a Igreja, é o ruralista, é o empresário, é o rayon.

Aqui um ponto curiosamente triste da minha retrospectiva: eu ia falar de Mariana, e aí... Brumadinho! E eu gostaria de dizer algo a respeito, mas francamente tenho me esquivado de ler, ver, buscar qualquer coisa a respeito desde que aconteceu. Menos ainda tenho estômago para ler os debates de Facebook que ficam discutindo partidos e nomes de presidente que tomaram a medida tal e tal. Francamente? Não entendo o investimento que se faz nesse tipo de discussão, já que tudo funciona nos termos explicados por Machado de Assis: a única coisa que muda é o nome da tabuleta! O Brasil realmente é um lugar estranho, e piora a cada dia. Cada vez mais fica claro que este país nunca teve nada além de torcedores fanáticos, e tudo, seja jogo, religião, ou política, será sempre tratado como um embate de torcidas rivais, e aí, minha gente, que se lasque que tem gente morrendo, o importante é defender o meu Time/deus/partido/candidato!

E aí, diante disso, me calo... Me calo em dor pensando numa dor que eu e tão poucos são capazes de sentir: Penso no sonho de aldeia que começou por uma iniciativa dos Pataxó, e outros povo, inclusive de alguns Puri, às margens do Paraopeba... um sonho tragado juntamente com a vida de mais de centenas de pessoas... E sabe-se lá quantos mais irão morrer, já que o veneno viaja na água até paragens longínquas. E de rio em rio, a Vale vai varrendo do Mapa os territórios ancestrais de meu povo... 

E a Vale nem é a primeira que já fez isso, afinal, há séculos Minas vem sendo devassada por uma sanha que busca tirar-nos tudo, principalmente a vida. Foram séculos disso lá nessas terras, para tirar da terra seus tesouros escondidos, se fez um rio de sangue e ossos...

Me desculpem. É por demais difícil falar sobre isso... 
E olha que estamos só em janeiro! E sim, claro, temos de falar desse circo de horrores diário que se instalou há poucos dias, mas falando disso, é claro, eu preciso não deixar de considerar que, em parte, é no fim das contas também uma troca de tabuleta. Li logo nos primeiros dias uma matéria cujo título dizia mais ou menos assim “Com suas primeiras medidas após a posse, o novo presidente declara guerra aos povos indígenas”. Bom, gente, e quando foi mesmo que não estiveram em guerra contra nós? Em tempo: é claro que não dá para ignorar que as coisas subiram de tom, já que pulamos aquela parte da mentira descarada de ‘povo cordial’ para a verdade nua e crua do povo bestial. E eu até prefiro a sinceridade à hipocrisia. 
E sabem, eu até considero que há um ponto positivo nisso: pelo menos a gente não precisa gastar mais tanto tempo tentando provar o óbvio: o Brasil é um país racista. Muito racista. Racista pra caramba. Cordialidade aqui só existe com que é parça – e olhe lá! E, é claro, nós indígenas não somos considerados parças. Nós somos aquela coisa que precisa ser removida, por morte ou assimilação. Mesmo de quem não necessariamente não está tão engajado em nosso desaparecimento, é difícil ser parça... Porque, como eu suponho já ter dito uma vez ou outra, empatia é uma coisa difícil de despertar, quando se trata de seres de mundos diferentes, cujas dores nem sempre são compreensíveis ou comunicáveis de forma inteligível. 

E é assim que chegamos em 2019, depois de um segundo semestre semeado de prenúncios do que estava por vir e, mesmo assim, lá estão os que se declaram surpresos e decepcionados com algumas medidas, e eu realmente me surpreendo é com essas declarações de espanto, dado que foram a pessoa passou mais de duas décadas anunciando em tom alto e claro exatamente o que tinha em mente. 
Não, talvez a surpresa seja na verdade cinismo descarado mesmo! Acho, aliás, que isto se ajusta mais à verdade. E além disso, tem aquele contingente que não tá nem surpreso, nem desapontado, nem desconfortável. Ao contrário, tá pra lá de satisfeito com essa lambança toda que está rolando, e tá ligando vários nada para todas as pessoas que vão morrer. (Afinal de contas, o que importa é o time, né?!) Há sim, gente que se identifica, que realmente se sente representado por esse ódio, e há gente que mesmo ficando desconfortável, é criminosamente omissa. E, em sua omissão se faz tão culpado quanto. 

Mas é claro, como nós indígenas, desde 1492 nas Américas, somos aqueles que são mortos primeiro, fomos aqueles que, conforme notícia do Portal ‘De olho nos ruralistas’ inauguramos a era de protestos com manifestações em várias partes do Brasil e do mundo ocorridas nesse dia 31/01... e, considerando que todo dia é uma novidade pior que a anterior, é de se esperar que realmente as coisas não parem por aí... pelo menos desse lado aqui da existência, que luta por bem mais do que curtidas no face. 
Porque nós, por exemplo, sabemos na mão de quem vai parar um bom contingente de armas que serão liberadas para posse. E de quem será o sangue que manchará o solo quando os homens de bem caírem sobre nós em defesa de uma propriedade que nunca lhes pertenceu. 

E sim, mais uma vez, havemos de lutar. Por nossas vidas, por nossos mundos, por tudo aquilo que eles sustentam. Que, a propósito, por mais que o rayon faça de conta que não percebe, é o que serve de sustentação também a seu próprio mundo. Porque como disse sabiamente Ailton Krenak: eu sei que nós indígenas vamos sobreviver, o que eu não tenho certeza é se os brancos vão sobreviver!
Mas claro, eu não posso falar só de dores. Como trouxe o Jairo em seu último texto, há sim, lugares e momentos de beleza e sagrado que nos servem de pausa. E eu desta vez estive alguns dias entre o Natal e o Ano Novo na Aldeia São Joaquim no Jordão, participando da homenagem à memória do inesquecível Ika Muru. E eu poderia escrever – talvez escreva – um texto inteiro sobre a infinita beleza daquela experiência. Falaria então sobre uma das mais belas mirações que tive até hoje. Talvez falasse sobre o céu do Acre, esse que é o dono de meu amor mais sincero e fiel desde a primeira vez que pude vislumbrá-lo no já distante ano de 2014. Poderia até mesmo falar sobre a surpresa de um outro amor, mais terreno, mas nem por isso menos miraculoso... Poderia falar também sobre as esperanças que sempre me recarregam as baterias quando passo alguns dias junto de uma aldeia indígena, e de como gosto de estar nesses lugares aonde relógios e horários não existem, e as notícias sempre péssimas demoram a chegar. E nisto falaria também de como me permito devanear em ilusões de que essa distância pode proteger os povos originários desse apocalipse humanamente provocado. É seria certamente um bom texto. Mas não sei se me cabe falar de beleza agora, e gostaria, de fato eu gostaria de encontrar-me com um tempo onde isto me seja permitido, e terminaria dizendo do quanto é difícil voltar à carnificina cotidiana do mundo rayon tendo estado entre os parentes. 

Por hora, cabe arrematar estas poucas linhas de respiração dizendo que o nome do Evento é Ika Muru Shuku Shukuwe, que significa ‘Ika Muru vida/vive para sempre’, e melhor adágio não poderia ser dado ao autor de livros de vida e cura. Ika Muru vive, e não apenas na memória de sua família e de seu povo. Ele vive. E, por isso, vale a pena acreditar e lutar por vida. Porque existem ainda essas pessoas que sabem cantar a cura sobre o mundo, é necessário permanecer de pé e seguir firme. 

É preciso de fato, estar vivo e lutar em prol desses vivos, inclusive porque pouco depois destes dias de encanto e celebração à vida, a Maloca aonde foram passados tantos momentos de beleza foi destruída pelo fogo, e agora a comunidade luta por sua reconstrução*. 

...Reconstruir: Eis a missão que temos tido há tanto tempo! Afinal que outro remédio resta àqueles que persistem na teimosia de viver? 

E é por isso tudo que tenho visto e sentido a respeito do que vem acontecendo, eu ando cantarolando “Sujeito de Sorte” do Belchior sobre esse 2019 que apenas começou: 
“Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro/Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro...” 
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* Existe uma campanha virtual na internet para quem desejar saber mais e eventualmente colaborar com a arrecadação:  http://vaka.me/440459  

Raial Orotu Puri (Andréia Baia Prestes Puri) é graduada em Direito e  doutoranda em antropologia pela UFPR. Mora no Acre onde atua como antropóloga no Distrito Sanitário Indígena do Alto Rio Juruá - DSEI-ARJ.



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