segunda-feira, 30 de maio de 2016

PRONATEC INDÍGENA: Xinã bena* nas aldeias do Juruá

Aula de cestaria nos Puyanawa - Foto IFAC
A conversa fluía na mesma proporção em que nossa caminhonete chacoalhava na estrada de barro desgastada, onde eram visíveis pequenas nascentes d´água de cor ferrosa aflorando aqui e ali, mostrando a inconveniente teimosa dos homens que construíram esta vereda sobre uma região rica em mananciais. Não muito longe, acompanhávamos com olhares rápidos, o avanço das demais caminhonetes do nosso comboio, que desviavam os obstáculos naturais da estrada num zig zag, em uma dança que parecia coreografada.

Voltávamos da cerimônia de certificação do Pronatec Indígena, ocorrido na TI Puyanawa, a primeira de um total de três a ocorrer nesta última semana de maio nas Terras Indígenas Puyanawa, Kaxinawá da Colônia 27 e Katukina/Kaxinawá. No veículo, levávamos de carona as colegas do IFAC que nos reportavam o sucesso que esta experiência estava causando, o que motivou o MEC a enviar um dos coordenadores nacionais do programa para participar das cerimônias e, também, observar esta experiência.

Esta certificação foi a parada final de uma caminhada começada ainda no início de 2015 com uma intensa articulação entre FUNAI, IFAC, OPIAC e AMAAIAC. O que motivou a construção desta experiência foi a necessidade de adequar este programa à realidade das comunidades indígenas, interferindo diretamente nos preceitos pedagógicos e curriculares do “cardápio” de capacitações que estavam sendo oferecidas às comunidades no Acre.
Esta necessidade, mesmo que intangível pela maioria, gritava-me aos ouvidos e achincalhava-me os brios pedagógicos a cada novo relato que lia ou imagem que via destes cursos, que vieram à esteira da necessidade de fomentar e fortalecer políticas públicas de produção, gestão ambiental e territorialidade orientadas pelos Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) e, também, contribuir para a implantação dos projetos de fortalecimento produtivo, como o já finalizado PROACRE.
Com a experiência acumulada e devidamente registrada de ações exitosas de formação de profissionais indígenas no Acre na área de meio ambiente, saúde e educação, ficava claro que esta capacitação técnica, mesmo que de curta duração e focalizada em um componente específico, carecia de uma análise e adequação à luz deste acúmulo curricular e pedagógico existente.
O interessante é que esta necessidade também foi sentida pela diretoria responsável pelos cursos PRONATEC na reitoria do IFAC, o que motivou este a procurar parcerias estratégicas para se discutir este tema, o que fez com que houvesse aproximação com a FUNAI.
Não pretendo divagar por conceitos pedagógicos ou fazer propaganda “chapa branca”, nem mesmo inflamar egos, mas acredito ser interessante citar que este movimento do IFAC junto à FUNAI propiciou o encadeamento de ações que contribuíram, em pouquíssimo tempo, para o estabelecimento de parcerias estratégicas com organizações indígenas, com a definição e estruturação interna de núcleos do IFAC e construção de parâmetros curriculares específicos para as comunidades indígenas.
GT interistitucional - Foto Jairo Lima
A partir deste contato iniciado pelo IFAC, rapidamente construíram-se pontes de comunicação e articulação com organizações indígenas como a Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre (AMAAIAC), com a Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC) e com a Associação de Artesãs e Artesãos do Vale do Juruá (AAIVAJ). O resultado foi a criação de um GT interinstitucional formado por estas organizações, o IFAC, a FUNAI e a Assessoria de Assuntos Indígenas do Gabinete do Governador do Acre.
Assim, em uma só tacada, este GT organizou e construiu propostas curriculares específicas para os cursos do PRONATEC INDÍGENA, fomentou e pôs pressão para a criação dos Núcleos de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI) dos Campi Cruzeiro do Sul e Tarauacá do IFAC e, ainda, deu um tranco na agenda política do estado quanto à necessidade de se retomar alguns processos que teimam na dormência a que estão submetidos já há alguns anos, como os cursos de formação para professores indígenas e o reconhecimento da categoria profissional dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre (AAFI).
Formadora Amanda Kaxinawá ensinando arte em miçanga para os homens
Foto Assis Kaxinawá
Vale destacar que durante o processo de construção deste projeto piloto do PRONATEC INDÍGENA ficou clara a necessidade de se agregar ao programa a possibilidade de participação de profissionais indígenas que possuíssem formação e expertises que os
Turma Katukina, de agrofloresta - Foto IFAC
credenciassem como formadores. Entre estes se destacaram os AAFI que já possuem formação completa, os professores e os artesãos indígenas com experiência comprovada. Essa iniciativa, além de potencializar o fator didático-pedagógico da formação, também veio ao encontro da necessidade em reconhecer e valorizar estes profissionais e mestres, de maneira a fortalecer a participação e o reconhecimento dos mesmos nos projetos e no desenvolvimento da comunidade, diminuindo assim a visão do “nawa que sabe tudo”. Alia-se esta participação de formadores indígenas com a definição de que estes cursos - com exceção do de cooperativismo e associativismo - ocorreriam dentro das próprias comunidades.
Aula de cerâmica - Foto Assis Kaxinawá
Uma vantagem que propiciou a construção das propostas curriculares dos cursos foi o fato de que no Acre há referências e materiais pedagógicos consolidados a partir das experiências vivenciadas nos últimos vinte anos, através de projetos inovadores como o Projeto de Autoria dos Índios do Acre e o Projeto Pedagógico de Formação de Agentes Agroflorestais Indígenas, ambos da Comissão Pró-Índio do Acre (CPIAC); o saudoso Programa de Formação de Lideranças, do Centro dos Trabalhadores da Amazônia (CTA) e; das experiências inovadoras como as desenvolvidas pela EMBRAPA nas TI’s Kaxinawá do Nova Olinda e Puyanawa. Junte-se a estas experiências uma variedade de materiais de apoio específicos produzidos junto às comunidades indígenas e extrativistas acreanas.
Ao final dos trabalhos do GT (que durou dois meses) estavam definidas as propostas de formação dos cursos: agricultura familiar; piscicultura; agricultor orgânico; técnico em agrofloresta; cooperativismo e associativismo; fruticultura e; artesão de artigos indígenas. Também foram construídas as minutas de editais que possibilitaram a participação de formadores indígenas e indigenistas com proficiência nos temas propostos. E por fim, definida e disponibilizada toda a referência bibliográfica necessária para os cursos.
Outras inovações foram: a definição de que as capacitações não seria somente para os indígenas aldeados, de forma a ser disponibilizada uma destas para aqueles que morassem em ambiente urbano, sendo a escolhida a capacitação em cooperativismo e associativismo e; o cronograma das aulas seriam construídos pelas comunidades participantes da experiência, considerando suas especificidades.
Turma Shanenawa, de agricultura orgânica com equipe do IFAC - Foto IFAC
Desde o início o projeto foi muito bem aceito pelas comunidades escolhidas, que viram com bons olhos o fato de que boa parte dos temas seriam trabalhados por seus próprios profissionais e que esta formação seria na comunidade, evitando-se assim, além de gastos com hospedagem e alimentação na cidade, a possibilidade de haver alto índice de desistência dos cursos.
Assim, entre fevereiro e abril de 2016, foram executadas as capacitações e felizmente,
apesar de desafios que se mostraram na experiência – e não foram poucos – logrou-se êxito esperado, superando mesmo as expectativas iniciais. Foi um tiro certeiro dividir com as comunidades todo este processo. E foi possível observar o desenvolvimento dos cursos através das matérias veiculadas e pelas inúmeras imagens compartilhadas pelos alunos e professores nas redes sociais.

Solenidade da TI Colônia 27 - Foto Assis Kaxinawá
O momento das certificações também foi um evento que rompeu com as formalidades frias e protocolares tão comuns em nossos “rituais de passagem”, onde gastamos um bom tempo de nossas vidas na escolha das roupas que usaremos e somos obrigados a respirar o ar carregado de perfumes exóticos doces e inebriantes, que sobrecarregam e impregnam todo o ar viciado que sai dos aparelhos de ar condicionado. Dos discursos monocórdios das autoridades em roupas cintadas. Do azucrinante “click” do fotógrafo que sonha com o provento que virá com as imagens e que para isso nos rouba a alma nas mais variadas poses e expressões.
As cerimônias ocorreram nas comunidades, onde todos estavam à vontade e puderam extrapolar o conceito de socialização, mesclando-se no balanço, pisadas e trejeitos das danças tradicionais, onde todos de braços dados ou apoiando-se em ombros gentis, expressavam uma alegria comum e despojada.
A sedução do ambiente e o clima descontraído propiciaram interações muito positivas com alguns convidados experimentando o rapé aplicado pelos caciques, que não levaram em conta – até porque isso não importa – a “patente” do convidado. E foi assim.... FUUUUU! Com o rapé saindo do curipe e entrando pelas narinas, aprumando a mente, limpando o corpo e sintonizando as ideias.
Cantando para os yuxin - Foto IFAC
A culminância destas solenidades foi a inauguração da sede própria do IFAC Campus Tarauacá, onde todos os parceiros e a comunidade indígena concluíram esta semana de forma brilhante e onde, além dos discursos, foram entoadas canções indígenas para que os yuxin sagrados abençoassem o local.


E assim passou a semana...
Nos Puyanawa todos se misturaram... - Foto Jairo Lima

Um dos resultados imediatos do programa foi a procura de outras terras indígenas que demandaram cursos do PRONATEC à FUNAI e ao IFAC. Outro resultado positivo foi o início de novas articulações visando a implantação de novos projetos que irão contribuir para a ampliação e fortalecimento desta parceria institucional e comunitária. Um exemplo desta ampliação vem tomando corpo na forma de três novos projetos: registro da musicalidade indígena; extensão e pesquisa nas terras indígenas e; o centro de idioma Hãtxa Kuin, que contará com a batuta de nosso querido Prof.Dr Joaquim Maná Kaxinawá.

Para mim foi especial estar numa destas certificações exatamente no dia em que os
Cantoria de aniversário nos Puyanawa - Foto Rainizia
planetas completavam o giro astrológico e zodiacal de minha chegada a este mundo, me propiciando uma emoção ímpar ao ouvir uma linda canção e receber vários abraços apertados que, além do verdadeiro sentimento fraternal, exalavam o doce aroma do jenipapo com urucum, tão conhecido e apreciado por mim desde a primeira vez que o senti há vinte anos.

Retorno à minha rotina revigorado e feliz, com uma sensação boa e entendendo perfeitamente a mensagem de um lindo adágio Ashaninka: Irooperori aseiki kametha!!! (O melhor da sorte é estar feliz).
 Jairo Lima
*Xinã bena = ideia nova

3 comentários:

  1. Nossa que trabalho excelente e acredito que com essas parcerias, todos os envolvidos tivereram ótimas experiências e troca de conhecimento, proporcionando aos educados envolvidos um excelente aprendizado. Espero que essa parceria e o trabalho pedagógico desenvolvido se propague por outras comunidades do mundo indígena. E realmente...o melhor da sorte é estar feliz...linda frase.Boa semana!

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  2. Nossa que maravilha! Esse envolvimento de todos para que a cultura indígena não tenha fronteiras para aprendizagem e conhecimento. Parabéns Jairo, realmente essa felicidade, tenho certeza, está na sua alma!
    Bjs amigo! Que Deus te abençoe grandemente, pois seu coração é maior que nossa floresta!

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  3. Muito obrigado, fico feliz e incentivado pelos comentários de vocês.

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