segunda-feira, 11 de julho de 2016

MUDANÇAS CLIMÁTICAS: Outros olhares sobre o problema...

O rio Moa, com suas águas escuras e convidativas, parece estar sempre plácido, mesclando-se em perfeita harmonia com suas praias adornadas de pontinhos coloridos que voam em caótica sincronia. Pontinhos amarelos, verde-amarelos, azuis claro, azuis escuros. Rodopiam em loucas revoadas para, em seguida, pousarem repentinamente sobre a areia. São as borboletas que fazem a festa, enquanto se alimentam na praia recém-desvelada pela baixa das águas ferrosas do rio.
Mesmo vendo a cena passando-se rapidamente, enquanto a bajola* vence a contracorrente em direção à paradisíaca fronteira entre Brasil e Peru, não tem como deixar de encantar-se com a visão.

Continuamos subindo o Moa e mergulho em pensamentos diversos, tentando imaginar como era este ambiente na época da visita do padre Tastevin, em 1913. O sol ainda não atingiu seu ápice, o que torna agradável a vista do horizonte, enquanto o vento fresco e revigorante nos refrigera e preenche nossos pulmões com ar limpo e puro.


Um lagarto enorme e colorido esquenta-se numa praia e, mentalmente, gravo a cena para perguntar aos meus anfitriões que bicho era aquele.
A pequena flotilha que me acompanha cria banzeiros nas praias enquanto ziguezagueia, parecendo uma grande cobra em movimento.

Apesar das belas praias, algo chama a atenção do piloto da minha bajola que,
rapidamente, acena para os demais enquanto diminui a velocidade da embarcação até encalhá-la numa pequena praia. É hora de reabastecer.
Sentado preguiçosamente na popa, aproveito para “reabastecer” meu cachimbo, grande companheiro de muitas léguas, e indago para os companheiros de viagem quanto às percepções que tiveram durante a subida até aquele momento. Todos parecem maravilhados com a beleza do lugar, com exceção do nosso barqueiro que estava 
Futebol na praia, TI Nukini - Foto: Jairo Lima
apreensivo com a demora da subida ocasionada pela vazante do rio, que dificultava o avanço: a estiagem tá muito forte, se continuar assim vai ficar bem complicado subir o rio daqui a alguns dias. Este ano o rio baixou muito. Comentou com ar grave.


Nosso destino era a Terra Indígena Nukini, localizada “ao pé” da Serra do Divisor. Um lugar lindo e misterioso, de clima agradável e que propicia uma feliz estadia junto à natureza, para os poucos visitantes que se aventuram em conhecer o local.
Passado várias horas, vejo ao longe, despontando no horizonte, uma grande antena de comunicação e, assim como um desbravador, sinto uma indizível alegria de estar chegando ao meu destino.

Passado o tempo, e já de volta à rotina frenética que nos acorrenta às engrenagens desta máquina chamada cidade, sentado em minha poltrona, repassando minhas anotações e relembrando tão aprazível aventura que vivi no alto rio Moa, observo a sequidão que assola as plantinhas do meu jardim, e me ocorre que esqueci de aguá-las no dia anterior. Vou à varanda de casa e vejo, ao longe, uma irritante fumaça. A brisa suave traz o já conhecido – e para mim detestável - odor da queimada de vegetação.

Em busca de notícias agradáveis leio nos jornais acreanos que o governo do Estado decretou situação de alerta em Rio Branco, devido à seca histórica que aflige o combalido Rio Acre, tão maltratado e com as margens presas numa cinta de concreto.

Para mim, estes sinais mostram que o mês de quintil (julho) começou zangado, mostrando a que veio e prenunciando um segundo semestre bem difícil, onde o clima se mostrará, mais uma vez, hostil.
Isso me fez lembrar de um excelente estudo sobre as mudanças climáticas sob o olhar das populações da floresta. Rapidamente, busquei-o em meus arquivos e o reli. Impossível não fazer automaticamente um link entre este maravilhoso estudo e o que venho observando, principalmente nos últimos anos.

Neste estudo, Tese de Doutorado de autoria da antropóloga Érika Mesquita, de título “Ver de perto pra contar de certo. As mudanças climáticas sob os olhares das florestas do Alto Juruá” (2012), somos apresentados a uma leitura da mudanças climáticas sob a ótica de indígenas Ashaninka e Huni Kuin, e de ribeirinhos e extrativistas, moradores do Alto Juruá, e que se encontram inseridos num meio ambiente totalmente interligado com natureza. Essa ecologia – ou “antropologia do clima”, como propõe a autora – põe em perspectiva as transformações e mudanças que são observadas e vividas por estes povos, dentro de uma lógica bem mais ampla, que mostra a intrínseca ligação do ser humano com a natureza e as “ciências” de cada estação do ano. Vale a leitura (clique aqui).

A leitura desta pesquisa me deixou pensativo e um tanto apreensivo. Não tanto pelo conteúdo em si, mas, pelo contexto que este aborda.

Enquanto os chamados cientistas se acotovelam e divergem sobre números e dados sobre o tal efeito estufa, os indígenas nos mostram uma leitura bem mais simples e mais profunda da situação. Os pajés constantemente nos alertam que os espíritos, os encantos da natureza, estão nos abandonando, pois a cada dia está menor a nossa ligação com eles.
Hoje em dia, em nosso mundo citadino moderno, cercado de artificialidades, concreto e especialistas em todos os assuntos, esse papo pode até parecer sandice, mas não é. Basta lembrar que a base de nossa civilização e de nossas crenças foi erguida sobre alicerces espirituais e naturais que sempre interagiram em perfeita sintonia.

Subindo o Ig. do Crôa - Foto: Cristiane De Bortoli
Só que, conforme avançamos no tempo, fomos cada vez mais impelidos a cenários artificiais e moldáveis. Assim, nossa ligação com este mundo natural vem diminuindo e por isso, a cada geração, vê-se a natureza somente como algo a ser explorado até o ultimo recurso.
Assim, para mim, não é estranho, nem devaneio quando ouço ou leio os alertas que os velhos pajés e os grandes líderes indígenas nos fazem.

Em 2014 uma forte tromba d´água, que parecia ter saído dos confins da floresta inexplorada do rio Gregório, atingiu em cheio a Terra Indígena lá localizada, deixando um rastro de destruição e desolação nas aldeias do povo Yawanawá. Foi uma enchente totalmente fora de época, antecipando em quase quatro meses o ciclo normal das águas deste rio. Estivemos presentes lá quando isso aconteceu e, realmente, apesar de achar que já vi de quase tudo um pouco, fiquei perplexo com tamanha destruição.
O líder Biraci Brasil Yawanawá resumiu bem a situação em uma entrevista para o jornalista Leandro Altherman:
 “Nem mesmo o pajé Yawarani, de 102 anos havia visto algo assim. Foi como se tivesse passado um ser humano cheio de ódio, revolta e vingança...Este é um novo tempo. Estamos reunidos para repensar e readequar nossa relação entre homem e natureza. É um novo tempo e precisamos nos enquadrar. O homem está vivendo seu mundo e não está olhando a mudança, a exigência e a cobrança que a natureza nos pede. Não estamos respeitando.
Para a nossa família Yawanawá, essa avalanche de água é uma lição para readequar nossos tempos, uma reconstrução de nossa relação com a natureza, para nos curvar diante deste grande saber, desta grande força que é a natureza. O mundo sente isso, mas nunca se curva. Nós recebemos esse recado da natureza, com dignidade e gratidão”.
Infelizmente, o “mundo” ainda continua a permanecer arrogantemente ereto, ou se comportando como a “cobra grande que quer engolir todo mundo” como bem alerta o grande líder Davi Kopenawa Yanomami.

O processo de observação da natureza e suas transformações é algo pouco comum hoje
TI Rio Jordão - Foto: Ion David
em dia, onde nossa visão está basicamente condicionada a observações de telas diversas: de computador, do celular, da TV. Assim não sentimos tanto ou até mesmo não entendemos muito o que se tem passado, pois somos bombardeados com informações incompreensíveis e cheias de números e dados que, por vezes, não fazem sentido. Para cada informação que recebemos, sempre há alguém contraditando. Mas de uma coisa todos parecem concordar: excesso de emissão de carbono na atmosfera. Ou seja, a culpa é do carbono, inimigo imperdoável, mais sinistro que Sauron e mais mortal que a mais terrível quimera, pelo menos, aos olhos dos cientistas.


E assim, somos orientados que a solução é diminuir a emissão destes gases. Realmente, concordo com esta orientação mas, vou mais além. Acredito que não se trata somente de diminuir essa emissão, precisamos sim, como bem disse o líder Biraci Yawanawá, nos curvar diante desta grande força, unindo-nos novamente com a essência desta, que é a natureza.

Sempre me lembro de um texto lindo e perfeito, escrito já há alguns anos atrás pelo professor Itsairu Huni Kuin, que, de maneira singela, nos faz vivenciar a transformação e mudanças na natureza e no ritmo dos moradores da floresta, durante cada estação do ano amazônico. Fico pensando: quem de nós poderia resumir tão bem como vemos, onde moramos, estas mesmas transformações? - Quem quiser apreciar e se encantar com o texto do professor Itsairu clique aqui.

Penso nas previsões de seca para os próximos meses. Pesarosamente “visualizo” os incêndios florestais, as águas dos rios muito baixas, animais morrendo, a poeira cobrindo nossas mal saneadas e pavimentadas cidades, o sofrimento dos bairros afetados com falta d´'agua, crianças e idosos com problemas respiratórios etc. 

Acreditem, já posso até  imaginar o tórrido calor que fará nos meses de setembro e outubro, onde as cigarras espocam-se de tanto cantar e o céu torna-se cinza durante o dia, e nos mostra uma luz vermelha durante a noite, resultado do acúmulo de fumaça das queimadas que nossos governantes juram que estão sendo combatidas e que, a cada ano, diminuem paralelamente à redução dos desmatamentos. 

Já visualizo, inclusive, as postagens nas redes sociais, de termômetros mostrando picos altíssimos de calor nas cidades, ou até mesmo, memes com piadas - para mim de péssimo gosto - sobre como no Acre faz calor. Confesso que não consigo entender, e até mesmo acho pueril, este costume de troçar de situações como esta, sob a falsa sensatez de que "é melhor rir do que chorar desta situação". Discordo totalmente.

Por enquanto, ainda é possível para as populações das cidades ludibriarem estas más sensações e as tribulações que se apresentam. Basta ligar o ar condicionado, ir ao mercado comprar produtos carregados de químicas e refrescar-se em águas artificiais e altamente clorificadas das piscinas de suas casas ou de clubes.

Quanto à natureza, muitos se contentam somente em olhá-la, com desdém, pelas janelas gradeadas de suas moradias. Nem tomam conhecimento ou nem lembram em que estação do ano se encontram no momento. Isso mostra o tão artificial em que se tornou este mundo citadino, essa selva de pedras. Mas fica a questão: e quando não for mais possível isolar-se neste mundo artificial?

Nos jornais, e nas mais diversas mídias de comunicação, vemos proliferar as vozes dos que buscam alertar para a necessidade de se ter mais consciência ambiental; mais prudência, menos consumo e por uma vida mais natural. Infelizmente, ao contrário daqueles que insistem em nos evangelizar aos gritos nas praças e pontos de ônibus, a adesão e o apoio a estas causas ambientais, ainda são pífios por parte das autoridades e da população geral.
A impressão que temos é que o cuidado com o meio ambiente não é regra, é excentricidade de uns poucos, entre estes os indígenas.

Por isso, esse tema tão bem abordado pela antropóloga Érika é importante e cativante, trazendo para a “roda” de estudiosos e militantes mais um reforço, com informações que pouco se conhece fora das comunidades florestais que vivem em contato constante com a natureza, e que percebem suas transformações dia-a-dia, ano a ano, a partir das observações ao longo de gerações.


TI Igarapé do Caucho -Foto: Jairo Lima
Nas comunidades indígenas assuntos como este permeiam as rodas de conversa, de rapé e de cipó, extrapolando, como bem descrito pela Érika, o espaço “físico temporal” e propiciando, comumente, reflexões sobre a relação humana com a natureza: como os “sinais” estão indicando mudanças drásticas no equilíbrio natural das coisas, o que influi no ciclo das águas, na dinâmica dos animais e nos “tempos” da floresta. Sinal que os “encantes*” estão se distanciando.

Para essas populações, que dependem da natureza em seu estado natural e equilibrado, as mudanças bruscas que vem ocorrendo tem um significado muito mais amplo, pois liga-se intrinsicamente à sua própria existência. Por isso, como aponta o estudo, é preciso ter “um comportamento respeitoso, uma etiqueta” neste relacionamento,  como bem colocado por um dos depoentes: “não há mais respeito como antes, parece que as pessoas esqueceram que cada coisa tem seu dono, seu responsável por ela no céu, e aqui na terra também tem seus representantes. Não sei explicar, mas a floresta que possui seus encantes, seres do bem e do mal, que vivem nela para guardar (...). Perfeito.
Sei que é bastante difícil para a maioria entender sobre o que estou escrevendo, parece coisa de atoleimado, mas, para aqueles que mantem um contato com a natureza ou com seus povos, principalmente os indígenas, o que escrevo está em perfeita sintonia com a “verdadeira realidade”.

Não estou defendendo a negação ou o desprezo pelo que a ciência e seus representantes vêm nos mostrando. Vejo, sim, que precisamos olhar mais ao nosso redor, buscarmos mais harmonia com este mundo, aprendermos mais com estes povos indígenas e outros que muito tem a nos ensinar. É preciso olhar sempre a realidade através de diferentes perspectivas, e como nos ensina Jiddu Krishnamurti, devemos estudar profundamente as leis ocultas da natureza e quando a conhecermos bem, devemos moldar nossas vidas a elas, usando sempre a razão e o bom senso.

Afinal, quanta quentura será que poderemos aguentar, antes que o solo ressecado e os leitos secos dos rios finalmente acordem nossos líderes políticos para a triste realidade que se apresenta? Para que entendam que flexibilizar leis ambientais ou destruir os habitats dos povos tradicionais nada mais é que atentar contra sua própria existência?
Aqui no Acre somos banhados pela maior bacia hidrográfica do mundo, no entanto, até aqui, a sequidão vem assolando cada vez mais. E, para surpresa geral, não vemos políticas ou ações efetivas de proteção às nascentes ou aos mananciais dos nossos rios e igarapés.
Num Estado rico em cultura florestal, representado pelos povos indígenas, extrativistas e ribeirinhos não vemos uma política educacional, de cunho florestal e ambiental, voltada às nossas crianças, preparando-as desde tenra idade para viver em harmonia com a natureza e seus povos, transformando seu próprio espaço escolar e familiar para equilibrá-lo com o meio em que vivem.

É preciso mudar. É preciso transformar. É preciso acordar.

Finalizei minha releitura do estudo, editando as palavras do meu querido amigo Benki Ashaninka em depoimento para a Érika: “(...) você viu a chuva que está caindo ontem e hoje. Não é normal. É muita chuva, agora já era época de fazer verão e ainda é inverno, o nosso calendário está mudado, os animais estão sentindo essa mudança, as árvores não estão florando quando tem que florar e os bichos perderam o sentido do tempo. Hoje não dá pra olhar o calendário como antes, está tudo mudado. Eu tenho a impressão que os animais também sentem essas mudanças, como os Ashaninka. Percebem igual a nós. A gente fica espantado, eles também, mas que percebem que o clima está mudado. Eles também sentem porque agora era tempo de tracajá botar ovo nas praias e ainda não o fez. E os feijões de praia que muitos estão perdendo por causa da chuva. Antes, essa época era de piracema de peixe, e hoje você vê como está, tá alto, tá quase cheio. Os tempos andam mudados para todo mundo (...)”.

Respiro fundo e um mal-estar me informa que é hora de minha medicação para a falta de
Eu e a Érika, subindo o Moa
ar, companheiro traiçoeiro, que resolveu “visitar-me” mais cedo este ano.
Fecho os olhos e rememoro os dias aprazíveis e cheios de encantos de minha visita à terra do bravo povo Nukini, ao pé da Serra do Divisor. Sinto o frescor da noite, a brisa impregnada da fragrância misteriosa exalada pela floresta. O som dos animais noturnos é uma sinfonia agradável e prazerosa que embala nosso sono, onde os “encantes” da floresta se apresentam e nos conduzem em sonhos cheios de símbolos e significados ocultos.

Desisto do remédio, vou molhar o jardim e contar uma linda história para os meus filhos, sobre os antepassados encantados do povo Ashaninka. Vou fazer minha parte, garantindo que eles mantenham em seu ser estes ensinamentos e vivam em harmonia com seus espíritos e com nossa mãe natureza.

Pikethashirieri kekitharetsi! (esse é um assunto para se pensar)

Boa semana a tod@s!

Jairo Lima
* Bajola - típica embarcação pequena utilizada nos rios do Juruá
* Encantes - é como as populações extrativistas designam os "encantos", ou "gênios da natureza"

5 comentários:

  1. Jairo parabéns seu texto está perfeito,além de ter abordado um tema super importante, um tema para se pensar e colocar em prática. Infelizmente não acho que os nossos líderes políticos estejam preocupados com o estragos feitos na natureza muito se fala mas pouco se faz.Nao é de hoje que os povos indígenas alertam sobre essa mudança climática ,que afeta a todos,mas infelizmente quem mais sofre é quem vive em sintonia com a natureza.

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  2. Guarde cada texto destes escrito e no futuro faça uma coletânea e transforme em.livro .....meus netos precisarão saber que estes tempos existiram!!! Grata Jairo!

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  3. Pois é. O assunto destas mudanças climáticas sempre tem que ser abordado, mostrando as diferentes opiniões e olhares sobre o assunto.
    Fico feliz de ter leitores destas minhas "matutices". Muito grato.

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  4. Jairo,sua crônica tocou-me no fundo da alma.Que os encantados nunca nos abandone.Vida longa aos que lutam pelo bem viver dos povos originários e pela generosa mãe Terra.

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  5. Obrigado, Francisca. Fico feliz que a mensagem toque realmente onde importa.
    Grato pela leitura.

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