segunda-feira, 4 de julho de 2016

KAMBÔ: É preciso conversar a respeito...

O grande romeya (pajé) Rekan Satanawa – conhecido como Chico véio Katukina – veio me procurar um dia destes, bastante apoquentado e um tanto abespinhado. Por isso pediu pra falar diretamente comigo para, segundo ele, “ter mais uma informação para tomar uma decisão”.
Ele me disse que o motivo de sua zanga era o fato de algumas pessoas da cidade estarem indo até sua casa, pedindo para aplicar o kambô e querendo pagar só um valor módico (não direi qual). Ele não queria atender essas pessoas, e isso fazia com que falassem mal dele na cidade.

A conversa se estendeu, e passamos a falar sobre o processo de tratamento e cura usando esta singular secreção. Fiz muitas perguntas e me encantei com suas explicações e preocupações. Ele me contou sobre o perigo e o descuido com que o dawa (não-índio) trabalha com esta medicina. Inclusive expressou perfeitamente a situação: eles (dawa) não sabem de nada, fazem de qualquer jeito. Não tem estudo, não tem cura, tem só enganação... e um monte de besta acreditando estar se curando.
Rimos muito. A conversa ainda foi longe, e ajudei-o na sua busca de “informação”, e ele me ajudou muito mais em minha eterna busca de “entendimento”.

Assim, embalado por esta conversa e pelo manifesto que o txai Macêdo fez estes dias em seu feed, abordo um assunto que vez ou outra se apresenta e nos impele a refletir junto às comunidades indígenas e a colegas indigenistas.

O foco será o controverso uso da chamada “vacina do sapo”, o kambô.

Sei que tratar deste assunto, de maneira tão “aberta” por indigenistas, é meio que um tabu, a menos, claro, que seja dentro das “paredes” invisíveis de uma dissertação, uma tese ou, ainda, de um parecer técnico. Mas me arrisco para fazer aqui algumas considerações que a meu ver são interessantes e que, a bem da verdade, não trarão nada de científico ou de definitivo sobre o tema. No entanto, acredito, assim como o Fernando Gabeira em sua mais recente postagem, que a confiança no triunfo racional leva a uma superestimação do próprio argumento.

Primeiramente, para quem não sabe, a popularmente chamada por estas bandas (e por
Romeya Rekan Satanawa com o kambô
outras também) de “vacina do sapo”, ou simplesmente de “kambô”, é mais uma das medicinas indígenas da Amazônia, muito comum no Acre e no Peru, que se utiliza da secreção de uma rã (Phyllomedusa bicolor) para afastar as “panemas” - que é o estado negativo de nosso espírito que atrai doenças, problemas e desarmonias na vida da gente -, harmonizando nosso yuxin com a natureza. Vale explicar que yuxin é um dos nossos espíritos, pois, segundo a crença de muitos dos povos indígenas desta região, todos nós temos dois.

Também é bom informar, que encontrar na internet referências sobre esta medicina, bem como descrição da rã é muito fácil, de maneira que não indicarei nenhum sítio aqui para evitar suscetibilidades de algum leitor.
Pois bem... voltemos ao nosso “abocamento”.

Essa medicina já foi alvo de briga internacional entre os indígenas do Acre e empresas internacionais que tiveram a ousadia de, além de piratear, também patentear os princípios ativos encontrados na secreção do anfíbio. Lembro bem que quando de minha primeira visita aos Katukina em 2004 estava em curso uma verdadeira cruzada encabeçada por lideres indígenas como Tashka Yawanawá para que fosse quebrada esta patente...e a briga se estende até hoje.

Meu primeiro contato com as propriedades purgatórias e espirituais de tão cobiçada jia foi em 2004, quando estive em atividade de pesquisa e assessoramento na Terra Indígena Campinas/Katukina, do povo Noke Koi. Caso queiram ler o relato de como foi este meu “encontro” clique aqui.
A partir deste encontro, nos meus estudos e observações posteriores, uma coisa ficou bastante clara para mim: a importância da observância dos preceitos ritualísticos e a finalidade a que se destina esta medicina.

Claro que defendo ser este um conhecimento exclusivo, de direito de uso e de competência indígena. No entanto, concordo com o jornalista, escritor e querido amigo Leandro Altherman, que defende, com muita propriedade e argumentos, o direito de uso e a seriedade com que outras populações tradicionais da floresta, como os extrativistas de utilizam este conhecimento. Mas manterei o foco no contexto indígena, até para não perder o fio da ideia central de minhas considerações.

Apesar da proibição pela ANVISA, desde 2004, de propaganda ou qualquer tipo de divulgação, que atribua propriedades curativas ou terapêuticas a esta medicina, é muitíssimo comum encontrarmos na internet propagandas de grupos neo-xamânicos, de “centros de cura”, de “centros de iluminação”, e outras embiaras do tipo, que apregoam tratamentos e curas para uma infinidade de enfermidades do corpo e do espírito, através da aplicação “terapêutica do kambô”, por “guardiões dos saberes aprendidos com os povos indígenas”. Fala sério...
Por curiosidade, até porque precisava de mais informações, naveguei um pouco nestes sites e fiquei perplexo com o que vi. O primeiro pensamento que formou-se em minha mente foi: não é possível que tenha gente que acredite nisso. Mas, após alguns momentos de reflexão e retrospectiva do que vi nestes últimos quinze anos, respondi a mim mesmo: com certeza, tem gente que acredita nisso.

É incrível que, nestes sites, se prometa cura ou tratamento para o câncer, HIV, urticárias, alergias, etc. E ainda por cima acenem com o total equilíbrio transcendental e cósmico do interessado, até o infinito de sua existência. Ou seja, prometem algo que, se realmente o kambô desse conta, poderíamos deixar de usar todos os outros remédios e medicinas que existem mo mundo. Desculpem, até por não achar sinônimos no vernáculo para o que acho que isso tudo seja, cravo aqui o conceito acreano mais popular mesmo: presepada! Para mim isso é banalizar um conhecimento tradicional milenar, ao mesmo tempo em que troça de quem se deixa levar por esta conversa e gasta seu tempo e dinheiro com isso.

Não acredito que estes chamados “guardiões” não-índios tenham em seu ser o Rono-Yonchi (espírito as Serpente), que os permitem tratar e curar com esta medicina, além de os possibilitar “subir ao céu para conversar com o Kana Tyuru e os espíritos dos mortos”*.

Sempre me lembro de uma conversa muito instrutiva com o velho Tuikuru Yawanawá, em
Tuikuru Yawanawá
que ele me disse algo que, até hoje, lembro e vejo se comprovar à cada dia: “o branco tem um costume feio: se apossa de nossos conhecimentos e começa a usar como se fosse deles. Transformam em brincadeira o que é sério e avacalham a coisa para ficar do jeito que eles acham que deve ser, de acordo com a verdade deles”. Realmente.

A ciência do kambô é algo sério e diretamente ligada a aspectos ritualísticos que, sem estes, perde-se o seu objetivo principal, que é a harmonização de nosso yuxin com as forças espirituais da natureza, como já descrevi acima. Não se trata só de fazer os “três pontinhos”, aplicar a secreção e ficar esperando o momento de retirá-la. A coisa vai muito além disso.
É uma medicina, um “remédio” que se toma quando se tem necessidade e, ao contrário do que muitos dizem, pode sim levar alguém à morte.

Nota-se o aumento de pessoas que se apresentam como aplicadores de kambô, que se dizem conhecedores da medicina. Principalmente junto as irmandades que comungam do chá sagrado. É preciso ter cuidado com estes charlatães. Já vi gente se passando por indígena, só para dar certa áurea mística aos seus serviços que geralmente custam muito caro. Temos visto ocorrer, em certo grau, o estabelecimento de um verdadeiro mercado negro ligado a esta prática.
Há de se refletir, se o aumento na procura da secreção desta rã pode ter algum impacto ambiental sobre as mesmas, uma vez que não são criadas em cativeiro, sendo sua obtenção através da captura na natureza.

- Ué... quer dizer que se for índio que aplica está tudo bem?
Não, o pressuposto de ser indígena não garante que este saiba aplicar corretamente esta medicina. Seria a mesma coisa que achar que todo japonês sabe preparar um sushi de baiacu. Entretanto, os indígenas que utilizam esta medicina a conhecem desde criança e sabem muito sobre seus rituais, dietas e aplicações, mesmo sem ser, necessariamente, um pajé.

Joaquim Tashka Yawanawá
No Acre, todos os povos indígenas são usuários desta medicina. Sendo que os Yawanawá,
os Kaxinawá e os Katukina sempre foram considerados os principais expoentes deste conhecimento, principalmente por causa da luta destes pelo reconhecimento e proteção desse conhecimento como exclusivo dos povos indígenas. Destaco nesta luta, a militância e clareza do posicionamento do líder Joaquim Tashka Yawanawá que sempre procurou alertar quanto a atuação de charlatães e demais aproveitadores (como os atravessadores). Vale conferir uma das entrevistas do mesmo sobre este assunto (clique aqui).

O governo federal deve retomar as pesquisas sobre esta medicina e definir os processo de uso da mesma, dentro de um contexto de homeopatia tradicional onde se reconheça, valorize e certifique as comunidades indígenas (ou extrativistas) para seu uso, com o estabelecimento de “casas de cura”, a exemplo da iniciativa realizada pelo governo chinês para com os tratamentos tradicionais deste país.
Até lá, creio que é preciso informar, esclarecer e, se necessário, reprimir a comercialização e o uso indiscriminado desta medicina. É preciso, principalmente, combater os charlatães e os atravessadores que são os que mais se beneficiam desta falta de regulamentação. Estes são, na minha opinião, biopiratas.

Também é preciso ter muita cautela ao se informar sobre esta medicina, não jogando no mesmo balaio o trabalho de curadores indígenas e extrativistas sérios com os de pseudo-xamãs espalhados em irmandades e demais centros esotéricos pelo país. Afinal, como dizem, a corda sempre arrebenta do lado mais fraco e, nesse caso específico, o lado mais fraco é do indígena.

É isso.
Esse tema é muito complexo e mergulhar mais fundo no assunto demandaria várias postagens, o que não pretendo fazer. Sugiro, apenas, que, os que tiverem interesse no assunto que pesquisem, se informem e entrem em contato com quem possa orientar e esclarecer mais sobre o tema. Vale à pena. Existem muitos profissionais que estudam sobre esta medicina e muitas lideranças indígenas e pajés que detém muito conhecimento sobre isso.

Para os que querem experimentar as propriedades curativas desta medicina, o que aconselho é procurar saber mais sobre o porquê desta necessidade e, caso queira realmente experimentar, que busque aplicadores sérios, que tenham alguma referencia.
É preciso entender que só quem está doente busca a cura. Assim como só quem está em desarmonia busca harmonizar-se. Afinal, água demais faz transbordar o pote, e o peso em demasia pode derrubá-lo e quebrá-lo.

Fechamos o mês de junho, que nos trouxe muitas surpresas boas, e outras nem tanto.
Nas horas terminais do mês da deusa Juno os yuxin sagrados nos pegaram de surpresa,
Antonio de Paula (1928-2016)
quando decidiram haver chegado a hora do querido ambientalista Antonio de Paula seguir com eles para a “floresta encantada”, nos deixando surpresos, saudosos e chorosos. Sua luta e vitórias foram registradas em vários livros, artigos, vídeos. O Juruá deve muito a este que é considerado por muitos, um dos maiores ambientalistas do Acre (clique aqui).

A entrevista gravada uma semana antes de sua morte, para a equipe do Nokun Txai, é o seu último registro em vida. Neste depoimento, este disse que nunca precisou, em toda sua vida, dar ou receber um soco par alcançar suas vitórias. Esta frase resume bem a mansidão e a convicção de seu espírito, mostrando ser verdadeira a sentença exposta em Gálatas: mansidão e domínio próprio. Contra estas virtudes não há lei.

Boa semana a tod@!

Jairo Lima

*Parte da crença Noke Koi (Katukina), sobre quem é verdadeiramente um romeya.

9 comentários:

  1. Como sempre, uma ótima crônica! Este assunto é mesmo muito importante e delicado. Porém, há necessidade, sim, de se conversar mais sobre o assunto e todas as suas implicações. Justamente devido ao seu grande potencial fisiofarmacológico, além de todo o aspecto cosmológico envolvido, é que também é grande a especulação em torno dessa substância produzida por uma espécie local, a qual também deve ser objeto de discussão.

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  2. Realmente, Moacir.
    Vale lembrar que em 2005 rolou um grande estudo a respeito, junto ao MMA e FUNAI. Infelizmente não foi pra frente. Creio ser a hora de por na mesa toda esta questão, inclusive de outras medicinas tradicionais.

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  3. Prezado Jairo obrigada pela tua clareza e discurso pródigo em defesa dos povos originais! Cada vez gosto mais da sua escrita! Andréa Monteiro

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  4. Prezado Jairo obrigada pela tua clareza e discurso pródigo em defesa dos povos originais! Cada vez gosto mais da sua escrita! Andréa Monteiro

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  5. Obrigado Andrea.
    Fico feliz que reconheça meus textos como úteis. Abração

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  6. Jairo eu desconhecia essa medicina indígena e por isso mais uma vez você me trouxe um novo aprendizado. E para as pessoas que já conhecem essa medicina, fica a dica para que busquem sempre um profissional .Parabéns , a cada semana nos trás um leque de aprendizado, conhecimento e discussões . Espero que as pessoas nunca coloquem água demais no pote. Ótima semana para nós !

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  7. Adorei Jairo, e levantou em mim uma curiosidade. O mistério da medicina indígena não pode e nem deve ser usado sem o conhecimento que tem os indígenas. Não é porque é exótico que tem que ser usado sem responsabilidade. Bjs!

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  8. Sim, queridas Hursilene e Ivanilde. Os povos indígenas conhecem e usam um grande número de medicinas da floresta. O Kambô é somente uma delas. Tem casos de pessoas aplicando esta medicina em SP ou RJ que chegam a cobrar mais de R$ 500,00 pela aplicação. Procurarei escrever mais sobre as diferentes medicinas em breve.
    Obrigado pela leitura deste blog

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