segunda-feira, 29 de agosto de 2016

PITSITSIROYTE: Povo Ashaninka e a musicalidade que veio de Pawa

Um dos objetivos deste blog é a divulgação do que chamo de “mundo indígena e indigenista”. Assim, vez ou outra, também estarei divulgando pesquisas, livros e outros materiais que vejo serem importantes. Dar publicidade a estes, em minha opinião, é essencial para fortalecer cada vez mais esta “teia cultural” que une não só os povos indígenas como, também, indigenistas e demais interessados.

Assim, o assunto hoje é a pesquisa sobre a musicalidade do povo Ashaninka*, realizado como Trabalho de Conclusão de Curso pelo professor, músico e cineasta Wewyto Ashaninka, da aldeia Apiwtxa, Terra Indígena Kampa do Amônia, município de Marechal Thaumaturgo.

Como músico, sempre achei muito rica a música e os instrumentos utilizados pelos Ashaninka e por isso, este tema sempre me chamou muito a atenção quando os visitava e, em 2003, tive a oportunidade de produzir e participar da gravação do primeiro CD do Benky Ashaninka.

Também foram os Ashaninka do Amônia os primeiros, no Acre, a lançarem um CD de músicas tradicionais, o Homãpani Ashënïka, em 2000.


Mas antes, para os que não conhecem, faço uma rápida apresentação deste povo e desta comunidade em particular.

Os Ashaninka são facilmente reconhecidos, pois se destacam pelas vestes (kusmas) e demais adornos característicos de sua cultura. São discretos e reservados, evitando interferências e mudanças nos aspectos culturais e sociais que os caracterizam, o que contribui para destacar a sua singularidade em relação aos demais povos do Juruá.
Essa discrição fica evidente quando verificamos que estes evitam divulgar seus rituais espirituais com o kamarãpy (ayhuaska), sendo raro, no Brasil, encontrar algum deles participando do chamado “circuito xamânico”. Em toda minha trajetória indigenista conheci somente três que divulgavam sua cultura em outros locais do Brasil e do mundo, mas, mesmo assim, de maneira muito discreta e restrita a poucos convidados. A relação dos Ashënïka com a espiritualidade os impele a um nível de respeito e restrição que evita charlatões, iniciantes no caminho sagrado ou “falsos pajés” se apropriarem ou arremedarem seus rituais.

No Acre existem quatro terras habitadas por este povo: Kampa do Primavera; Kampa e Isolados do Envira; Kaxinawá/Ashaninka do Rio Breu e; Kampa do Amônia. Esta última, em especial possui um histórico de reconhecimento e sucesso não só no Brasil como, também, no resto do mundo.

Foi para lá que, nos anos 90, o cantor e compositor Milton Nascimento viajou junto com o
Benky e Milton Nascimento - Foto: Divulgação
Txai Macêdo, como parte da inspiração para a gravação de seu disco “Txai”. Disco este em que se destaca a música “Benky”, em homenagem a uma criança, com o mesmo nome, que anos depois se tornaria uma figura mundialmente conhecida pelo seu trabalho ambiental e pela divulgação da cultura do seu povo. Trata-se do Benky Ashaninka.
Também, nos últimos anos esta comunidade vem se destacando por projetos de sucesso, como o Centro Yorenka Atame e, mais recentemente, a fábrica de polpa de frutas e a execução de um projeto pioneiro financiado pelo BNDES.

A cultura material desse seu povo – que também habita outras regiões da selva Peruana - serviu de inspiração para a coleção de roupas do ano de 2015, da grife Osklen. O vídeo produzido para divulgar como foi o contato com esta cultura é muito bom (clique aqui).
No campo das “relações públicas”, em 2016, além de serem objeto de exposição no Museu do Índio, abriram o espaço da aldeia Apiwtxa para a filmagem de uma novela. E, bem mais recentemente, tivemos a realização do projeto “Teia Indígena do Acre”, no Centro Yorenka Atame, que reuniu diversos Povos Indígenas do Acre, de outras partes do Brasil e do Peru.

Desfile da Osklen durante SPFW
Uma coisa interessante de citar é que muitos pesquisadores “dão com a cara na porta” quando procuram esta comunidade para realizarem suas pesquisas, pois eles não costumam aceitar todos os pedidos de pesquisa que recebem. Ou seja, a exposição ou abertura para pesquisas são analisadas pela ótica do benefício que isto trará para a comunidade.

Ainda neste ano de 2016, como parte de um projeto em parceria com o Instituto Social Ambiental (ISA), A FUNAI e a ONG Inglesa Survival Internacional para a publicação de um livro sobre as culturas indígenas brasileiras, a comunidade Apiwtxa também foi registrada pelas lentes do famoso fotógrafo SebastiãoSalgado.

No campo político destaco a candidatura do professor e escritor Isaac TotoAshaninka para a prefeitura do município de Mal Thaumaturgo.

Por fim, outro destaque que não poderia deixar de fazer quanto a esta terra indígena e seu povo, diz respeito à luta destes pela proteção territorial e ambiental da fronteira Brasil/Peru e das comunidades que lá habitam. Esta luta é reconhecida internacionalmente e já foi premiada pela ONU. As ações transfronteiriças desta comunidade vêm gerando estudos e resultados surpreendentes. Para quem quer ler sobre uma aldeia desta situação de fronteira, bem como a gravidade de sua situação, vale a leitura de uma matéria recentemente publicada no conhecido blog do Jornalista Altino (clique aqui).

Voltemos ao professor Wewyto...

Nasceu em 1978, fez parte de um grupo de professores formados em magistério específico indígena, no pioneiro Projeto de Autoria, da Comissão Pró-Índio do Acre (CPI/AC) e que, assim como os demais, através deste projeto teve acesso a outro, o de formação de cineastas através da organização Vídeo nas Aldeias.

Tive o prazer de ser um dos formadores do Wewyto nos cursos de magistério durante
Wewyto Ashsninka- Foto: Vídeo nas aldeias
alguns anos e, pela proximidade de idade que temos, nos divertimos bastante em diversas oportunidades nestes anos de formação e durante minhas visitas à sua comunidade.
Como professor participou da produção e publicação de diversos materiais didáticos, tanto na pesquisa e escrita como também na sua ilustração. Conheço os desenhos deste professor e sempre me impressionei com eles, é um desenhista de mão cheia, com certeza.

Como cineasta foi autor e produtor de uma série de vídeos sobre o cotidiano de sua comunidade. Entre estes vídeos, muito deles premiados internacionalmente** (alguns disponíveis no youtube), destaco: No tempo das chuvas (2000); Shomôtsi (2001); Dançando com Cachorro (2001); A gente luta mas come fruta (2006) e No tempo do Verão (2013).

Outra faceta deste professor é o conhecimento do mundo musical de seu povo, não só no que diz respeito aos aspectos sociais e míticos como, também, no domínio das canções e dos instrumentos musicais tradicionais. O maior divulgador das canções Ashaninka é o ambientalista Benky Piyanko, irmão de Wewyto, que, além de gravações, já participou de apresentações em várias partes do Brasil e na Europa.

O interesse de Wewyto pela tradição musical Ashaninka consolidou-se como material de estudo, tornando-se o tema de seu Trabalho de Conclusão de Curso, em 2013, na área de Linguagem e Artes, do Curso Superior Indígena da Universidade Federal do Acre, tendo como titulo “Registro artístico de musicalidades do ritual do Piyarëtsi do Povo Ashënïka do rio Amônia”.

Esta pesquisa é muito interessante e será apresentada pelo próprio autor aqui no blog.
Assim, abro espaço para o excerto desta pesquisa onde o autor se apresenta e descreve seu objeto de estudo:

Eu, Valdete da Silva Pinhanta, conhecido pelo meu povo como Wewyto Piyãko tenho 36 anos. Sou casado e tenho oito filhos. Estou atuando na sala de aula desde 1996. Também sou cineasta formado pela ONG Vídeo nas Aldeias. A participação deste projeto me deu a oportunidade de viajar a várias partes do mundo.

Wewyto tocando sõkary com seu pai
Foto: Frederico Lobo
Sou um Ashënïka que gosta e valoriza muito o conhecimento sobre as músicas e os instrumentos do meu povo. O que aprendi com os anciões sobre a musicalidade me deu coragem e muita força para continuar meu trabalho como educador de minha aldeia.
Este trabalho versa sobre a musicalidade, vem sendo desenvolvido por mim desde quando comecei a trabalhar como educador.

Vinha pesquisando somente com os anciões a partir da oralidade e, na prática, aprendendo com eles sobre s mitos e sobre as músicas cantadas e tocadas faz festas Ashënïka dopiyarëtsi. Aprendi muito a cantar e tocar os instrumentos usados nos rituais musicais com eles.

Este trabalho trata dos conhecimentos sobre a musicalidade de meu povo, mais especificamente dos conhecimentos relacionados ao ritual do Piyarëtsi (caiçuma).

A arte Ashënïka não é uma atividade separada, individualizada. Normalmente ela se mostra totalmente ligada à vida cotidiana, em cada objeto tradicional produzido, em cada ritual manifestado, em cada gesto.

A nossa arte é a expressão de força e conexão com o mundo mítico e espiritual. A beleza está presente como parte do cotidiano, não importa a hora.

As pinturas corporais, por exemplo, no decorrer do dia ou numa festa podem ir se dissolvendo, nas elas não precisam permanecer o dia todo para justificar sua beleza. Ao longo do dia podem-se ter várias pinturas e retoques, de acordo com o que cada um queira. Ela é, no presente, uma expressão necessária, assim como a linguagem falada, a musicalidade e a corporalidade. Neste sentido, todos Ashënïka, no Brasil, atualmente, são falantes da língua materna, assim como também valorizam muito nossa tradição musical, seus instrumentos musicais utilizados nas festas, tais como as flautas,os tambores e o arco-de-boca, além dos cantos.

Pitsitsiroyte foi um ser muito poderoso que, nos tempos antigos, ensinou os Ashënïka a tocarem o sõkari (flauta tipo pã), a cantarem as músicas acompanhadas com o tãpo (tambor) e a realizar os rituais de danças.

Quando Pawa (Deus) ainda estava na terra, ele deixou cada um de seus filhos com uma
Curaca (cacique) Antonio Piyanko e seu tãpo
Foto: Eliane Fernandes
missão a ser realizada. Um destes filhos foi o Pitsitsiroyte que ficou ensinando todos os Ashënïka que tinham interesse em aprender a tocar e cantar as músicas.


De modo geral, a transmissão das músicas tradicionais Ashënïka dava-se, sobretudo, pelo exercício das práticas de oralidade. Não havia registros escritos dessas atividades.

No mundo Ashënïka existem sempre pessoas que desenvolvem conhecimentos específicos a respeito de certas categorias ou modalidades artísticas. Tem sempre alguém que sabe fabricar melhor um instrumento musical com mais habilidade e competência. Saber sobre o uso e a função dos instrumentos, conhecer os detalhes e técnicas para que os instrumentos sejam apreciados e aprovados pelos membros de sua sociedade são indispensáveis para se construir um instrumento.


As mulheres só podem usar dois deles, os quais também são tocados pelos homens: piyôpirëtsi (arco-de-boca) e o porero (flauta transversal).

Alguns dos rituais das mulheres e homens Ashënïka:
O pirãtaãtsi é um ritual das mulheres. Nesrte ritual várias situações podem acontecer e as mulheres podem fazê-lo para acompanhar os homens que concomitantemente, fazem o ritual masculino do tãpotãtsi ou do sõkataãtsi. Elas posicionam-se deslocadas em relação ao ritual masculino, embora ambos os rituais sejam relacionados entre si, por exemplo, de forma dialógica com os homens no tãpotãtsi. É muito divertido e acontece no meio de uma festa.

Neste ritual, quanto mais as mulheres participam é melhor para dar ritmo e animação à festa. Elas não usam instrumentos, mas cantam em meio circulo. Elas cantam indo pra frente, voltando para trás e dando volta no grande terreiro, segurando nas mãos uma das outras, deixando os homens no meio do círculo. Juntas cantam em vozes mais altas que a dos homens, dando ritmo à festa.

Sõkary tocado pelos adultos Foto: Vídeo nas Aldeias
O ritual sõkataãtsi é dos homens e só eles podem tocar os instrumentos sõkari, que dá origem ao ritual só participa efetivamente do ritual quem tem o sõkari. No entanto, as mulheres podem realizar seu ritual do pirãtaãtsi em conjunto com os homens.embora as músicas possam ter letras para que sejam cantadas, no ritual do sõkataãtsi elas são executadas apenas na flauta.

Os músicos reunidos dão os toques iniciais da música e em seguida saem em volta do terreiro. Cada músico, um por vez, propõe uma música e os demais acompanham. O proponente será o hewatakayerone sõkataãtsi, ou seja, o puxador da música proposta. No decorrer da música e da volta do terreiro, este puxador fará pequenas paradas no centro no centro do grande terreiro, formando um círculo para atualizar o toque das flautas e posteriormente continuarem.

Esse é um dos rituais mais respeitados e valorizados por todos. Segundo os antigos Ashënïka, foi um dos primeiros rituais ensinados por Pitsitsiroyte. São os mais velhos, adultos conhecedores que puxam e dão dinâmica ao ritual.

Este ritual é realizado para agradecer a Pawa pelo belo dia, pela alegria, a união, a abundância nas colheitas, o bem estar com a vida e com toda a comunidade e, por fim, pela bebida. Esse ritual pode durar horas e para finaliza-lo, o puxador da musica anuncia o seu encerramento com o toque do sõkari bem mais lento, de modo que todos os demais tocadores o acompanhem. Assim finaliza-se o ritual com risos e cumprimentos.

No povo Ashënïka a cultura das festas e o conhecimento das músicas são fortes, mas o
Wewyto ensinando um jovem aluno - Foto: Isaac Piyanko
contato om o mundo do não-indígena cria uma preocupação com alguns jovens que não estão dando o devido valor às músicas do povo, preferindo as músicas dos wiracocha
(não-índios). Esta preocupação é importante para evitar a perda dos hábitos musicais, de acordo com as tradições herdadas dos antepassados deste povo.

Pois é...
Como citei este é um excerto da pesquisa escrita e ricamente ilustrada pelo Wewyto. Não encontrei este material disponível na internet. Para os que tiverem a oportunidade de acessar este material garanto que não se arrependerá.

Pelo que me disse, Wewyto pretende dar continuidade em sua pesquisa quando estiver fazendo o mestrado, em breve.

Finalizo por aqui sentindo um friozinho na barriga ao lembrar as noites de festas de piyarëtsi ou de kamarãpy que tive a oportunidade de participar junto a este lindo povo.
Aprendi muito com eles, somando à minha busca por conhecimento – e por mim mesmo – mais uma pecinha neste intrincado quebra-cabeça que é nossa existência.

Eu e Benky Ashaninka, em 2003 subindo o rio Amônia
Foto: acervo pessoal
Enquanto o Brasil se contorce e assiste ao que o senador com muita propriedade chamou de hospício, o “mundo real” indígena continua seu movimento, sempre com muita luta e dificuldades para continuar sua existência e equilíbrio, longe dessa loucura coletiva dividida em ideologias.

Ler a pesquisa do Wewyto me fez ouvir novamente minhas gravações com o Benky, o que, em seguida me deu vontade de tocar  violão, o que fiz prazerosamente antes de terminar as últimas linhas deste texto. A sensação boa que ficou após mais este contato com a música me fez lembrar e concordar com as palavras do Wewyto: A música nos leva a voar no ar. Entramos no som de nossos instrumentos e nos relacionamos com os pássaros, os peixes, as ervas, os legumes, as bebidas e outros seres.

Hatana*** e boa semana a tod@s!
Jairo Lima
* Escreve-se Ashaninka ou Ashënïka. Este ultimo é utilizado principalmente pelos indígenas.
**Prêmios que os vídeos de Wewyto recebeu: Prêmio UNESCO 2001; Melhor filne no Festival Présence Autochtobe em Montreal, Canadá, em 2002; Grande prêmio “Rigoberta Menchú Tum” 2002; Menção honrosa do Juri oficial no Cinesul 2002; Prêmio “Rigoberta Menchú” no II ANACONDA 2002, Bolívia; Prêmio Especial do Público Indígena, II ANACONDA 2002, Bolívia; Forumdoc, BH, 2002, melhor vídeo da mostra competitiva nacional; entre outros mais recentes.
*** Hatana é uma saudação de despedida na língua Ashaninka.

2 comentários:

  1. E novamente iniciamos a semana com um novíssimo aprendizado, fiquei encantada , povo lindo, um verdadeiro exemplo de organização ,vestimentas impecáveis , adornos perfeitos. Parabéns pelo seu trabalho e por nos proporcionar entrar um pouco nesse mundo indígena , que me encanta a cada dia,através das suas belas palavras.

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  2. Muito rico este texto, Jairo! Bom seria que nas escolas se ensinassem também a história destes povos que são os verdadeiros Brasileiros de origem. Ensinam com tanta ênfase o descobrimento e colonização feita pelos Portugueses e demais povos europeus e asiáticos que formam nossa etnia e esquecem dos indígenas.

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