segunda-feira, 14 de novembro de 2016

ASHANINKA: O poder da beleza...

Por: Jairo Lima

Sempre que dou alguma palestra, ou atendo estudantes e pesquisadores que buscam saber sobre os povos indígenas do Acre, costumo usar a metáfora do “continente europeu”, para me referir a estes povos. Explico: Imagine o continente europeu e seus países, com seus povos e aspectos culturais. O que eles têm em comum? Bem, todos estão na Europa. Falam a mesma língua? Bem, alguns sim outros não. Todos tem o mesmo aspecto cultural? Não, alguns até tem aspectos parecidos, mas outros têm aspectos totalmente diferentes.

Pois bem. Da mesma maneira é nosso Pindorama e, em menor escala, o Acre indígena, que tantos povos abrigou no passado e, atualmente, possui mais de trinta e quatro Terras Indígenas, onde habitam dezesseis povos. A cultura destes possuem pontos em comum e outros totalmente singulares. Tal qual o velho continente.

Esse preâmbulo todo é para focar em um ponto central que, acreditem, ainda é de desconhecimento da grande maioria da população acreana (e do Brasil, seguramente): os povos originários (que chamamos índios) não são todos iguais! Parece lógica e clara esta afirmação, mas acreditem, esta lógica e clareza não se estende a todas a mentes, infelizmente.

E o que torna esta diversidade tão rica e maravilhosa são justamente as singularidades que compõem esse mosaico cultural.

Em geral vemos comumente nos filmes, novelas, revistas e outras formas de comunicação de massa, referências ou deferências em relação a aspectos culturais de algum país estrangeiro, aspectos que, em muitos casos, passam a ser imitados, principalmente pela juventude, ou incorporado a certos hábitos e costumes dos mais velhos. Isto é visto como um processo de “refinamento” social, uma evolução cultural, uma mostra de superioridade. Tem também, os costumes ditos “exóticos”, que passam a ser replicados como mostra de uma fina interação entre o ser humano contemporâneo e o “primitivismo” essencial à sua existência.


Temos vários exemplos disso: yoga, meditação budista, ritual do chá japonês, terapias com ervas; vestimentas indianas; calçados australianos; comer insetos; não comer certas carnes; jejuar; fazer dietas. etc.

Em maior ou menor grau, todos, inclusive este que vos escreve, acaba por incorporar à sua cotidianidade material e espiritual um retalho de excertos culturais adquiridos de maneira consciente ou incorporados inadvertidamente.

Pois bem... e se eu dissesse a você, caro leitor, que estes mesmos aspectos refinados, tradicionais e superiores estão perto de você, ao seu redor? Que estes aspectos estão em sua cidade, logo ali, perto de você?
Onde? – Fácil esta resposta: nestes países que são chamados de “terras indígenas”, onde habitam culturas complexas e ricas de povos que são chamados “indígenas”.
Conhecer cada cultura, seja em seus aspectos primordiais, seja de maneira profunda, é acima de tudo uma experiência transformadora, pois, descobre-se todo um novo mundo. Mundo este muito similar àquele que vemos como “a moda do momento” em nossa sociedade.

Toda esta reflexão foi para apresentar um livro que me chegou às mãos, cujo título é “Ashaninka: O poder da beleza”. Publicação do Museu do Índio, focada na cultura material e imaterial deste povo, que, no Brasil, habitam quatro terras no Acre, às margens dos rios Tarauacá, Envira e em afluentes do Juruá como os rios Breu e Amônia. Sendo a mais conhecida, a Terra Indígena Kampa do Amônia, lar de figuras muito conhecidas como Benky Piyanko, o prefeito recém-eleito Isaac Toto Ashaninka e que, através de seus projetos e parcerias, tem expandido o nome deste povo muito além dos ventos tropicais deste país. Dê uma “googleada” que você entenderá o que quero dizer.

Este livro é um material bonito, resistente e com a excelência típica das publicações do Museu do Índio, com imagens maravilhosas e textos pontuais que abordam os aspectos culturais primordiais deste povo.

De cara, o que me chamou a atenção foi o fato de que a maioria das imagens não são coloridas. Esse detalhe causou-me estranhamento, no entanto, ao passo em que mergulhei na leitura e analisei das imagens (pois é, sou do tipo que usa lupa para melhor observar alguns detalhes), entendi a arte das mesmas, bem como a utilização constante da cor negra e sua sincronia com a simbologia e mitos deste povo. Perfeito.

Cada aspecto cultural deste povo, que certamente possui um grau altíssimo de refinamento e estética é abordado de maneira leve, direta sem a profundidade e o detalhamento das teses e demais publicações oriundas destas, que não são acessíveis ao entendimento de todos, sendo a leitura um esforço prazeroso somente para quem tem interesse no tema.
O foco é na sua arte corporal, onde se apresenta todos os objetos fabricados e utilizados por eles, bem como a relação entre estes e com o corpo, os mitos, etc. E que giram ao redor dos dois grandes eixos em que gira a cosmovisão Ashaninka: a procura pela imortalidade e a fragilidade do amor.

Este material traz ainda uma singularidade muito especial: a apresentação da cultura é feita, em sua maioria, por imagens e narrativas coletadas junto às aldeias localizadas no Alto Rio Envira. Uma preciosidade principalmente devido ao fato que alguns destes narradores já não se encontram materialmente entre nós.

Não posso deixar de registrar que, mesmo tendo contato há muitos anos com este povo, ler este material esclareceu-me algumas dúvidas que ainda tinha ou entendimentos que há muito havia esquecido. Afinal, trabalhar junto a muitos povos, como é o meu caso, por vezes atrapalha nossa memória imediata para todos os detalhes de cada cultura.

Assim, para quem tem ou já teve contato com eles, ler este material é muito bom para entender alguns aspectos que de cara chamam a atenção como, por exemplo, as vestimentas e os adereços utilizados. Para aqueles que já tiveram a oportunidade de visitar uma aldeia Ashaninka, é a oportunidade de entender certas singularidades que tenham observado, como algumas atitudes cotidianas, tanto de homens quanto de mulheres.

Por exemplo, posso citar o costume diário de meditação, comum e necessário à existência e postura material e espiritual de um individuo. Assim, o Ashaninka costuma, ao final da tarde, sentar-se voltado para onde nasce o sol, a fim de meditar, ficando em silêncio, pois, segundo a cultura destes, “é o silêncio que ensina”, assim como, uma vez que são filhos diretos de Pawa (Deus solar) é preciso parar e ficar em silêncio para poder ouví-lo.

O entendimento sobre o Kitarentse (cushma – vestimenta tradicional) e demais adereços mostra o respeito com que tratam cada detalhe de sua confecção, estando esta intimamente ligada a este ser bidimensional (ser material e espiritual), onde qualquer erro ou desleixo em sua confecção pode trazer sérias consequências para o equilíbrio deste ser.

Para quem não teve nenhum contato proximal com eles, a leitura não deixa de ser instigante, pois toca em aspectos que facilmente o leitor irá associar a referências que acreditava ser única de povos “doutras terras”, como, por exemplo, as simbologias das imagens como expressão pessoal e canal de energização mística. Cita-se como exemplo a pintura facial, que pode expressar não só a postura em que o indivíduo possa estar em relação ao seu meio social, em determinado momento, como, também, assume importante fonte de comunicação mística com os espíritos diversos da natureza ao redor e da morada mística dos seres venerados por eles.

Materiais como este contribuem para mostrar um lado da cultura destes povos, um lado muito rico e sedutor, além do horizonte visualizado por muitos que vem ao Acre, que veem ou se interessam somente na chamada “cultura ayahuasqueira”. E nisso afirmo que, pautar seu interesse e contato somente em uma característica em particular, como esta, é nadar em um mar de belezuras e maravilhas poucos metros abaixo da superfície e que não são vistas porque se tem preguiça de mergulhar um pouco.

É um material que vale a pena adquirir e, pessoalmente, além de ter sido prazeroso reforçar um pouco mais meu conhecimento sobre os Ashaninka, também traz algo misterioso, pois venho ajudando a organizar as memórias do meu querido e venerado Txai Antonio Macedo, sendo que este livro chegou-me às mãos justamente no momento em que estou organizando o capítulo em que este txai narra seu contato e trabalho com este povo, nos idos do ano de 1985.

Fico feliz pelo livro e por tudo aquilo que ele me fez reviver, bem como pelos esclarecimentos que deram nexo ao mosaico de conhecimentos, vivências e experiências que tive ou sobre as quais ouvi falar.

Finalizo retomando minhas próprias lembranças das viagens realizadas às aldeias deste povo. As tardes de meditação, mascando coca e em silêncio. As noites mágicas com o Kamarãpy, elevando nossos espíritos nas asas do japó sagrado. Das festas de Piyarentsi, onde vamos de casa em casa dançando, tocando, cantando e bebendo caiçuma (piyarentsi). Das risadas agudas e altas das tsinani (mulheres), com suas cushmas coloridas e sonoras por causa dos enfeites com sementes. Do cheiro forte de assado. Da amizade verdadeira e fraternal de todos. Das reuniões sobre a organização da comunidade... tantas lembranças.

Sempre me chamou a atenção a estética diária deles, sempre buscando estar bem alinhado, pintando-se diariamente e, no caso das mulheres, “retocando” esta pintura durante o dia, a gente fica com a impressão que vai ter festa, mas não, é apenas o cuidado pessoal do dia-a-dia.

É isso...

Fico feliz em saber que faço parte de um grupo que vem crescendo, um grupo que posso chamar de privilegiado por ter contato com estes povos e sua cultura. Um grupo que não se faz de cego ou “olha para o outro lado”. Um grupo que ainda sente prazer em ser parte de uma comunidade, de um coletivo onde as amizades desinteressadas são importantes. Um grupo que se identifica com a interação com o meio ambiente, com o cosmos que este representa.
Capa do livro

Um grupo que, acima de tudo, entende a necessidade de cada vez mais voltarmos às nossas origens naturais, e que, para isso, não fica parado, só pensando, pois como bem está registrado nesse livro, nas palavras sábias do querido amigo Benky Piyanko: Se o equilíbrio, por exemplo, ecológico é quebrado o mundo faz sentir isso, dá advertências, avisos (...). Pensar, refletir é muito importante, mas não se pode esperar demais para fazer as coisas.... nossa cabeça é como o mundo, e o mundo é como nossa cabeça.

Boa Semana a tod@s,

* Todas as imagens utilizadas neste texto foram retiradas do livro Ashaninka: O poder da beleza

** Para maiores informações de como adquirir este material entre em contato com o Museu do Índio.

4 comentários:

  1. Alaga lembranças das minhas andanças... Aguça vontade de ler o livro! Delícia de texto...importantes informações compartilhadas Jairo! Fãzona sua!

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  2. Pois é Dedê, as lembranças que guardamos destas belezuras e formusuras que vivemos é o que nos move, é o que nos transforma em pessoas diferentes das demais...

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  3. Belo texto Jairo como sempre maravilhoso estou curiosa para ler o livro, mas principalmente para ver as imagens....amei essa frase que usou ao responder o comentário da sua amiga Dedê .... As lembranças que guardamos...é o que nos move.Perfeita. Tenho acompanhado os comentários e o texto da Dedê no seu blog e no face e as palavras dela são tão encantadoras quanto às suas , vcs escrevem com o coração e com uma leveza que nos toca a alma.Parabéns!!!!

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  4. Hursilene, realmente as lembranças são o que mais nos movem e confortam. As vivências, os sentimentos, alegrias, tristezas, derrotas e vitórias. Tudo isso nos move sempre. Fico feliz com suas palavras e grato pela leitura. Gosto muito da Dedê e das palavras que ela escreve (e me fala) nos momentos que temos contato. abraços.

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